Uma celebração de final de ano é sempre uma oportunidade para agradecer a Deus, Senhor e Juiz da história, o tempo que nos foi dado viver, os acontecimentos de que fomos protagonistas, as graças (quer dizer: os acontecimentos de que Deus foi o principal protagonista) que nos foram concedidas ao longo deste ano que agora termina. E, ao mesmo tempo, é também uma oportunidade para tomarmos consciência daquelas opções ditadas pela nossa liberdade que ofenderam Deus e o próximo e, assim, ofenderam também a nossa própria dignidade.
A palavra de Deus vem em nossa ajuda, fazendo-nos confrontar com o admirável Prólogo do evangelho de S. João (Jo 1, 1-18), onde encontramos resumido o drama da história humana e, em particular, o drama do crente: “O Verbo veio para o que era seu, e os seus não O receberam. […] Fez-se carne e habitou no meio de nós”.
O Prólogo joanino começava por proclamar o que constitui o fundamento de todo o real: o Verbo que é Deus, realidade primeira, inicial, anterior à própria realidade criada.
A palavra “Verbo” constitui a tradução latina do grego Λόγος , no qual se condensam dois outros conceitos bíblicos: o de “palavra” (דָבָר) e o de “sabedoria” (חָכְמָה [chokmah], σοφία), ambos usados no Antigo Testamento para referir Deus quando Ele se dirige ao Homem, evitando, deste modo, a pronúncia do “nome” divino.
Assim, ao contemplar a Sabedoria e a sua expressão na Palavra pronunciada, o evangelista João afirma uma das principais características do próprio Deus: a ordem, a razão, que se mostra, se expressa no universo criado e, em particular, no Homem.
Deus nem é arbitrário nem guarda para Si os seus tesouros. Pelo contrário: nele se encontra a chave, a ordem, a lei de todo o real; e essa razoabilidade é comunicada a todo o criado: “por Ele [pelo Verbo] tudo aconteceu”. É por isso que o cientista pode investigar, procurar as leis pelas quais se rege a ordem da natureza; e é por isso que ao ser humano é pedido que se comporte de um modo razoável, quer dizer: de um modo correspondente ao “logos” presente na sua natureza, e que é imagem, expressão por excelência do próprio Logos divino.
Mas se as leis da natureza se encontram aí, ao nosso alcance, bastando-nos a razão para as encontrar e conhecer, já o agir humano se encontra maravilhosamente oferecido não a partir do determinismo natural ou do instinto que obriga, mas da lei da liberdade, que nos permite escolher responsavelmente, tornando-nos desse modo, imagem e semelhança divina, criando-nos, assim, como alguém que se pode dirigir a Deus, e participar com Ele no maravilhoso diálogo da salvação.
O evangelista, no entanto, foi mais longe. Porque S. João não se limitava a afirmar a razoabilidade do criado e a liberdade humana. Afirmava também que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
Ao fazê-lo, S. João concretizava e centrava a história da salvação — que o mesmo é dizer: a história humana olhada não a partir das gestas vitoriosas e das derrotas sofridas, como encontramos habitualmente nos livros, mas a história olhada a partir de Deus e de como a Sua Vida, que é vida eterna, se entrelaça com a nossa existência, com a vida humana que decorre no tempo. Com efeito, quando o Verbo se fez carne e habitou entre nós, a história humana adquiriu um centro e, ao mesmo tempo, uma qualidade divina, até então insuspeitada.
Jesus de Nazaré tornou-se, deste modo, Aquele para onde conflui todo o existir humano que lhe é anterior, e de onde brota a nova existência que lhe sucede. Ao descer à nossa condição carnal, tornou-a divina, quer dizer: expressão e caminho para Deus. S. João Paulo II dizia-o com toda a clareza, ao afirmar que o Homem é o caminho da Igreja: “O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social […] é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção” (Redemptor hominis, 14).
É pois à luz do Verbo feito carne, do Deus feito Homem, que podemos e devemos olhar este ano que nos foi dado viver. Nem outra possibilidade nos é permitida, a nós, cristãos. Como poderíamos nós olhar a nossa existência e aquela do mundo que nos rodeia, a não ser à luz deste Deus que é “o” Homem, o mesmo é dizer: Jesus de Nazaré? Como poderíamos nós conformarmo-nos com outra medida menor, menos exigente porventura, mas também menos dignificante do ser humano? A fé, quer dizer: aquela atitude de vida que nos é dada no batismo e que informa, a partir desse momento, toda a nossa vida, exige que esta assuma como medida do humano o Deus que é Jesus e, como caminho para a divinização humana, o único Homem que pode realmente conduzir a Deus porque é Ele próprio Deus: Jesus de Nazaré.
Deixemos, pois, irmãos, que seja Jesus Cristo a medir os nossos atos, as nossas opções, a nossa vida interior, espiritual, e também aquela exterior, que, de um modo ou de outro, influi na sociedade, naqueles que nos rodeiam. É uma medida grande, exigente, a maior que possamos alguma vez imaginar: é a medida da santidade, porque nos confrontamos com o Deus três vezes santo. Mas é uma medida de misericórdia e de amor porque Ele não veio para condenar o mundo mas para o salvar (cf. Jo 12,47).
Que significa este confronto? Significa que não podemos deixar de nos interrogar se, como cristãos que somos, a nossa vida (interior, espiritual ou social, pública e mesmo política) permitiu uma maior e melhor expressão da dignidade única de cada pessoa humana: se respeitámos o outro na sua dignidade; se o ajudámos a ser mais ou, ao contrário, se fomos obstáculo ao seu caminho. Significa também, necessariamente, interrogarmo-nos acerca da nossa vida como sociedade, como comunidade pública e política: de que modo a nossa vida pública (política, associativa) foi ou não aquele ambiente humano de que todos necessitamos para viver e para ser cada vez mais humanos?
Este confronto significa, ainda, olhar para a nossa vida enquanto comunidade diocesana — o mesmo é dizer, como Igreja local, tendo em conta que, como nos diz o Concílio Vaticano II, uma diocese é “Uma porção do povo de Deus na qual está presente e atua a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” (cf. CD 11). Ou seja: havemos de nos interrogar acerca da nossa efetiva vida de fé e acerca da nossa real presença no mundo enquanto testemunhas da ressurreição, anunciadores do Evangelho de Jesus. Havemos de nos interrogar até que ponto, ao longo do ano de 2019, fomos uma comunidade presente, que procura e abre caminhos; que sempre propõe, que mostra a felicidade de sermos batizados, membros de Cristo, comunidade eclesial que torna presente, no nosso mundo, a Jesus ressuscitado.
Não nos contentemos, no entanto, em olhar para trás. O passado, a história une-nos ao acontecimento único e irrepetível da encarnação do Verbo — aquele precisamente que celebrámos há apenas 7 dias e, por isso, olhar para ele é-nos indispensável; mas uma diocese que se limitasse a ver o passado e a realizar o seu balanço — que se contentasse em ser mera guardiã de património, seria uma comunidade sem esperança, não seria a Igreja de Jesus. Diante de nós, urgindo ao caminho, encontra-se o próprio Senhor, fim último do nosso peregrinar.
Estes momentos que os homens consagram como fronteiras, são meras realidades artificiais, que nos permitem tomar consciência do que somos: criados pelo amor divino à sua imagem e semelhança, vivemos no tempo, naquilo que é transitório, perecível e frágil, mas a caminho da eternidade.
Diante de nós surge um novo ano. Diante de nós surge uma imensidão de momentos de graça que urge aproveitar. Aos cristãos de Roma, o Apóstolo Paulo convidava: “Sabeis em que tempo vivemos: já chegou a hora de acordar, pois a salvação está mais próxima agora que quando abraçámos a fé. A noite avançou e o dia aproxima-se. Portanto, deixemos as obras das trevas e revistamo-nos da armadura da luz” (Rom 13,11-12).
Que a fé nos dê a força e a coragem de viver desse modo o ano que está para começar.
Catedral do Funchal, 31 de dezembro de 2019
D. Nuno Brás