Homilia do bispo do Funchal na celebração da Paixão e Morte do Senhor

SEXTA-FEIRA SANTA

Catedral do Funchal, 19 de Abril de 2019

Irmãos

1. Hoje, em dia de Sexta-feira Santa, a cruz de Jesus é colocada no centro da celebração, para receber a adoração dos fiéis — atitude nos outros dias reservada exclusivamente à Eucaristia.

Mas sabemos como, mesmo fora deste dia Santo, a cruz é tão querida a nós cristãos. Ela foi, logo desde o início, o sinal que nos definiu. Começou por ser um escândalo: o escândalo de quem ousa anunciar um Salvador morto, condenado à morte de cruz, o modo mais horrível e mais temido de condenação. E, no entanto, os primeiros cristãos não hesitaram: eram discípulos de um crucificado que lhes tinha dito: “Se alguém desejar seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).

Não se trata, absolutamente, de qualquer tendência para o pessimismo ou o sofrimento. Trata-se antes de perceber como o amor de Deus por nós — pela humanidade no seu todo; pelos homens e mulheres que hoje vivem; por cada um de nós, por ti que aqui te encontras nesta Catedral — trata-se de perceber como o amor de Deus longe de ser uma ideia ou conceito geral é antes algo de concreto, tão concreto e real como a vida e a morte. Tão concreto e real como a cruz e a morte de Jesus.

Ali, quando Deus morre — quero dizer: quando Deus experimenta em primeira pessoa o que é morrer, com todo o sofrimento, abandono e solidão que isso traz consigo; quando Deus experimenta a morte dos malditos — ali percebemos como Ele assume e vive o sofrimento de todo o universo, o sofrimento da humanidade de todos os tempos. Percebemos como Ele assume e vive o pecado e a morte de todos os seres humanos.

É por isso que alguns artistas — de S. João da Cruz a Salvador Dalí — quando se interrogam sobre o modo como Deus olha para o nosso mundo, representam uma cruz vista a partir do Céu. É através da Cruz que Deus olha para o nosso mundo. É através da Cruz que somos vistos, amados e iluminados por Deus. A Cruz de Jesus Cristo é a forma como Deus te olha e, assim, é também o modo como podes olhar e representar-te o próprio Deus.

A cruz de Jesus Cristo é o lugar do amor. Longe de ser o lugar da morte, é antes o lugar onde resplandece o amor divino, com toda a sua grandeza, com todo o seu esplendor, com tudo o que tem de infinito e incompreensível. Deixando-te confrontar com a cruz de Jesus, deixas-te confrontar com a medida máxima do amor. Então, quando percebes o quanto Deus te ama, tudo se ilumina na tua vida, todas as sombras e recantos da tua existência, mesmo aqueles que gostarias ficassem desconhecidos do próprio Deus.

Não nos espante, portanto, que a Cruz de Jesus Cristo tenha ultrapassado as fronteiras da fé e se tenha constituído como expressão de uma inteira civilização — da nossa civilização cristã —, do que ela é, das suas conquistas e dos seus ideais.

2. Mas, ao mesmo tempo que adquire toda esta grandeza, nunca a cruz de Jesus Cristo deixou de ser algo de concreto, que toca e ilumina todos os momentos, pontuais ou englobantes, da nossa existência.

Nesta semana tivemos notícia de dois acontecimentos, tristemente concretos e reais, que deixaram em todos uma interrogação. Por um lado, o incêndio da catedral de Notre Dame — a “catedral da Europa”, símbolo de uma Europa cristã que da terra eleva o seu pensamento, a sua acção, o seu espírito a Deus e procura e afirma que o Céu não se encontra desligado da terra, e que esta não consegue ser um espaço digno do homem sem a atitude orante de quem escuta, pede e responde a Deus. Um incêndio destruidor quase deitou por terra a Catedral de Paris. Permaneceu, significativamente, no seu interior, a cruz que, apesar do escuro das paredes queimadas, e contrastando com elas, continuava a brilhar, como que a proclamar, teimosamente, o amor de Deus por todos.

E, dias depois, na passada quarta-feira, um acidente ceifou a vida a 29 nossos irmãos e deixou tantos outros com ferimentos graves ou com marcas no seu coração — marcas de um momento onde a vida se mostrou frágil e fora do nosso domínio. Um sofrimento, a que não somos capazes de aportar qualquer explicação, como é sempre o sofrimento inocente. E, na parede da casa destruída pelo autocarro, lá estava a cruz, como que a dizer-nos como o Senhor padece sempre de novo, hoje, nos nossos dias.

Como quer que seja, nós, cristãos, não podemos deixar de ver nestes acontecimentos um parentesco com o sofrimento mais inocente que é o de Jesus na Cruz. E olhando para esse momento de trevas, não podemos deixar de sentir, de perceber como o próprio Deus sofreu e continua a sofrer, porque a cruz de Jesus resume, sintetiza faz seu todo o sofrimento do mundo. E não podemos igualmente deixar de nos dar conta que apenas na cruz nos é oferecida uma luz que nos afirma a capacidade redentora, salvadora, destes momentos-limite de humanidade.

Na cruz está o sofrimento da humanidade: todo o sofrimento humano, com todo o seu peso (como terá sido pesado o sofrimento do Senhor!). Na cruz está o teu sofrimento e o teu pecado; está a tua morte. Mas está também o amor de Deus que o suporta! Suporta-o porque o vive contigo e o sofre contigo (não recusa nunca tomar contigo a cruz!). E suporta-o porque, contigo, te ajuda a vivê-lo, tornando mais leve o seu peso.

Na cruz, encontras, igualmente e sempre, o amor de Deus. Esse amor que tudo ilumina; que permite ver mais longe; que convida a ir além da razão e do sentimento para procurares as razões do amor, as razões de Deus, como o fizeram tantos e, de um modo particular, os santos.

Nesta tarde de Sexta-feira Santa — na tarde desta Sexta-feira Santa — deixa que este amor concreto, pessoal e eterno de Deus, ilumine a tua vida. Deixa que Ele te salve.

D. Nuno Brás, bispo do Funchal

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