Homilia do Bispo de Vila Real em ordenações sacerdotal e diaconais

O Presbítero, educador da fé e da razão

 

1- A liturgia deste Domingo antes do Natal lembra as circunstâncias de lugar e de parentesco do Messias prometido: nascerá em Belém, da tribo de Judá, e sua Mãe será Maria, uma virgem de Nazaré. Noutros textos referiu já o nome do pai legal, José, e no dia da festa precisará a data do nascimento, o tempo do imperador romano César Augusto.

Estes pormenores são importantes para sublinhar que Jesus não é uma lenda, uma ficção passada fora do tempo e do espaço, mas uma pessoa com data e lugar históricos, Deus verdadeiramente encarnado.

A Encarnação é única na história das religiões, sendo o Cristianismo a única religião que tem este mistério de Deus feito homem, connosco e para nós. Como diz o salmo, Deus «tem um rosto», um rosto humano.

A segunda leitura faz a ligação do Natal com a Páscoa, fala do sacerdócio de Jesus, revelando a plenitude da missão do Messias, a sua morte salvadora. O Natal é o início do novo culto: «ao entrar no mundo, Jesus disse: «sacrifícios e holocaustos não os quiseste, mas deste-me um corpo. Eu venho, ó Pai, para fazer a tua vontade». Há dias o Papa recomendava que olhássemos para o Natal com olhos da Páscoa. É o que já pregava Paulo aos Filipenses: «ao fazer-se homem, o Filho de Deus desceu, despojou-se da sua glória, esvaziou-se, aniquilou-se, fazendo-se igual a nós; e ao morrer no Calvário e ao ser sepultado desceu ainda mais (Fil 2).

Nesta nossa Sé temos estes três passos bem gravados na arte sacra: nos janelões altos da nave central, a divindade eterna do Verbo – «No princípio era o Verbo, e o Verbo era com Deus, e o Verbo era Deus»; no retábulo do presbitério, no andar inferior, vemos Maria, José e o Menino, as figuras do presépio; no andar superior do mesmo retábulo, o Crucificado, a Deposição e a Ressurreição. Em todos eles o mesmo amor: o amor que O fez descer ao presépio e o amor que O fez subir ao Calvário.

 

2- É neste cenário do Natal e da Páscoa que se faz esta Ordenação sacerdotal e diaconal. O Padre tem algo do Natal e algo da Páscoa: o Padre é o homem da proximidade com o povo, um pastor do presépio no meio do povo, e é também o homem da oferenda que Jesus iniciou na Encarnação, exprimiu na apresentação no Templo e consumou no Calvário.

Nunca vos esqueçais desta dupla dimensão: trazeis convosco o ministério e o ministério de Jesus na sua realidade histórica e sacramental. Precisareis de uma vida inteira para assimilar estas verdades, de modo que vos sintais bem perto das pessoas e, ao mesmo tempo, vos sintais ministros da oferenda, carregados de outro amor e de outro poder, de modo a estardes junto do povo sem ser do povo.

 

2- Gostaria de deixar uma palavra aos cinco Leitores hoje instituídos e, com eles, aos catequistas, aos professores e aos educadores aqui presentes, e aos párocos neste Ano Sacerdotal.

A fé cristã não é uma questão de bons sentimentos, como erradamente se ouve às vezes dizer. Não basta ter bom coração, bons sentimentos, é preciso ter boa cabeça. Jesus apresentou-se como Mestre, como o Logos, a Sabedora de Deus, o Verbo de Deus: foi o Verbo de Deus que se fez carne», a Sabedoria que habitou entre nós.

A instituição dos Leitores lembra essa presença e importância da palavra de Deus. A missão do Leitor não é só proclamar os textos bíblicos nas celebrações, mas também fazer todo o tipo de catequese do povo cristão, das crianças e dos adultos. Dito de outro modo, dar às pessoas uma estrutura mental que preceda e dê consistência ao comportamento ético e religioso.

Esta missão da educação da inteligência é actualíssima. Dentro da Igreja, corremos hoje o perigo de ter cristãos que vão à Missa, casam pela Igreja, frequentam os sacramentos, mandam os filhos à catequese e, no seu íntimo, pensam de modo pagão, dizem não concordar com o Papa, nem com os bispos, nem com a Igreja. O que é isto? Seria uma religião de sentimentos soltos, uma religião acéfala, verdadeiros monstros.

Mas a crise estende-se aos que não têm fé. Assistimos hoje á degradação da própria natureza e da inteligência. Acerca da natureza, ainda ontem terminou uma assembleia mundial sem quaisquer compromissos sobre o respeito pela terra. E o mesmo acontece quanto à inteligência e aos seus mecanismos. Vivemos uma profunda crise da inteligência e do uso da razão, uma época de logofobia, horror à lógica natural, de cabeça invertida: raciocina-se às avessas, sem respeito pela realidade biológica e pela realidade sociológica. Tratar de modo igual o que é diferente, dar o mesmo nome a realidades naturalmente distintas, chamar normal ao que é excepção, é ofender a razão, é deseducar, é desgovernar. Assiste-se a uma tentativa de legislar sem cabeça, sem respeitar as leis da biologia, sem respeitar a cultura, sem respeitar o povo, uma legislação nascida do capricho de grupos de pressão.

Há anos o Papa Paulo VI dizia que faz parte do ministério da Igreja ensinar as pessoas a raciocinarem bem, para depois agirem correctamente. Dizia mesmo que a filosofia sadia pode ser uma pré-evangelização. De facto, uma cabeça mal arrumada tudo perverte.

A Bíblia diz que devemos amar a Deus com toda a inteligência, e o Papa actual não se cansa de o fazer em todos os seus documentos, com apelos à fé e à razão. Não é a fé que corre perigo, é a própria laicidade natural que é desprezada. O cristão é hoje chamado a salvar a Criação e a inteligência humana: defender as pessoas do mau uso das plantas, do mau uso do vinho, do mau uso do corpo, do mau uso da inteligência, aquilo que os antigos chamavam sofística e que S. Paulo refere nas suas cartas.

Quando fazemos o Sinal da Cruz é pela cabeça que começamos, e só depois descemos aos lábios, ao peito e aos braços. É assim que baptizamos e é assim que fazemos ao iniciar e ao terminar a celebração. Quando subirdes ao ambão para fazer as leituras, lembrai-vos sempre que sois discípulos de Jesus, que se chama o Mestre, o Verbo de Deus.

É com Ele que vamos prosseguir a nossa celebração, com rigor de pensamento que dê segurança ao nosso comportamento e alegria sadia que dê calor à nossa oração.

 

Vila Real, 20 de Dezembro de 2009

Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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