Homilia do Bispo de Viana na Quarta-Feira de Cinzas

Com a celebração da cerimónia litúrgica das Cinzas, damos início ao tempo da Quaresma, que precede o tempo Pascal. São quarenta dias dedicados à reflexão espiritual, à prática mais intensa da oração, da escuta da palavra de Deus, tempo oportuno para a conversão interior e apelo à prática de boas obras.

Por tratar-se de acontecimento relevante para a vida da Igreja e de cada cristão, como já vai sendo hábito, o Pastor universal, o Papa Bento XVI, enviou-nos uma mensagem. Ela está presente nesta outra mensagem que hoje vos dirijo. Para ultrapassar o natural desgaste do tempo, sentimos necessidade de reservar alguns momentos da nossa vida para rever como brotam e se desenvolvem em nós os ensinamentos evangélicos; examinar as nossas limitações e cansaços. Como são muitos os obstáculos que temos de ultrapassar, recomenda-se que, em cada ano, a atenção se centre particularmente num dentre eles, que nos pareça o mais urgente no sentido de valorizar e dignificar a nossa vida, neste momento concreto que estamos a viver.

Este ano, o Papa propôs-nos o vasto tema da justiça, ao apontar que «a justiça de Deus realiza-se através da fé em Jesus Cristo» (cfr. Rom 3, 21-22). É bom ter presente que a palavra “justiça” assume um significado muito próprio na Sagrada Escritura. Homem justo é aquele que conhece e cumpre os preceitos do Senhor, que o leva a amar a Deus e ao próximo. Temos uma referência bíblica concreta sobre este sentido de justiça, ao ser apresentado José, o esposo da Virgem Maria, com estas palavras: «José, homem justo» (Mt 1, 19). É parte integrante desta justiça o conceito cívico e jurídico de “dar a cada um o que é seu”, numa referência aos bens materiais.

Sabemos, contudo, até por experiência própria, que a pessoa humana tem direitos que vão muito além dos bens materiais. E estes dificilmente podem ser garantidos meramente pela força da lei, à maneira de uma justiça distributiva. Não pode ser-nos indiferente o facto de existirem, ainda hoje, pessoas que carecem de alimento, de água, de medicamentos, de amor fraterno…

Este tempo quaresmal é momento oportuno para reflectir de onde vem a injustiça. Será eventualmente possível que haja algumas injustiças cuja raiz provenha ou esteja fora da pessoa humana; mas a fonte mais comum das injustiças nasce no coração humano: no egoísmo que impede o amor. Como pode o homem libertar-se «deste impulso egoísta e abrir-se ao amor do outro»? Responde Bento XVI: por um lado, através da aceitação plena da vontade de Deus; e por outro, pela vivência da equidade em relação ao próximo. Não nos deixemos iludir. Deus está sempre acordado e atento ao grito do pobre, do estrangeiro, da vítima de qualquer escravidão. Importa não nos fecharmos dentro de nós, em qualquer atitude de auto-sufi ciência, que é origem da injustiça. A abertura aos outros é já caminho de libertação e antecipação no tempo da Páscoa definitiva.

Podemos ter esperança de justiça? O anúncio cristão responde positivamente à sede de justiça do homem, na expressão do apóstolo Paulo: «Está manifestada a justiça de Deus… mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os homens» (cfr. Rom 3, 21-25). Não são os sacrifícios do ser humano a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor de Deus que se abre até ao extremo, para lhe transmitir a bênção que pertence a Deus concedê-la.

Converter-se a Cristo, acreditar no Evangelho, significa precisamente «sair da ilusão da auto-sufi ciência para descobrir e aceitar a própria indigência; precisamos de Deus e dos outros, do seu perdão e da sua amizade. Esta descoberta da fé não é um facto natural, nem cómodo», refere o Papa. Exige renúncia voluntária e conversão. Fortalecido por esta experiência, o cristão é levado a contribuir sempre, tanto quanto lhe é possível, para formar sociedades justas, onde cada um dos seus membros recebe o que lhe é devido para viver com a dignidade de ser humano, em que a justiça é vivificada e complementada pelo amor.

Esta atitude é verdadeiramente pascal e libertadora. É uma verdadeira e contínua participação nos frutos da ressurreição pascal de Cristo. Por isso, um tempo quaresmal bem vivido – no esforço animado pela oração para atingir estes objectivos de purificação espiritual – é o melhor caminho para nos prepararmos para a vivência e celebração da Páscoa que se aproxima, e do tempo pascal que se inicia com a Missa vespertina da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa, e dá início ao Tríduo Pascal.

Reflectindo sobre as diferentes situações em que se encontra a população desta Igreja local de Viana do Castelo, neste ano, exorto-vos a prestar particular atenção aos idosos, cada vez em maior número nas nossas comunidades cristãs, por vezes em situações muito precárias de isolamento, saúde, carências económicas e sociais, que tornam impossível usufruir do mínimo de qualidade de vida humana.

 A conversão a Deus, que se exprime por sinais visíveis, como a cerimónia da imposição das Cinzas, a prática da moderação na tomada de alimentos, complementada pela partilha fraterna em favor dos mais necessitados, é possível e desejável. E a Quaresma é o tempo oportuno.

A renúncia quaresmal que sois convidados a praticar durante este tempo terá em conta também as vítimas do sismo do Haiti e as carências dos nossos sacerdotes idosos.

Viana do Castelo, 17 de Fevereiro de 2010

D. José Augusto Pedreira, Bispo de Viana do Castelo

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