Homilia do bispo de Setúbal na Missa da Ceia do Senhor 2025

Foto: Diocese de Setúbal/Ricardo Perna

Saudações fraternas a todos, todos, todos.

Na tarde de hoje, encontramo-nos de novo à volta do altar, desta vez com um propósito muito concreto, reviver os gestos de Jesus naquela que foi a sua Última Ceia.

Repetir o gesto do serviço, aquele que Jesus fez quando lavou os pés aos seus discípulos, perante a surpresa de todos. Repetir os gestos sagrados que nos trazem Jesus consagrado no pão e no vinho, sabendo que, a partir daquele dia, nunca mais estivemos sós. E regressaremos a nossas casas conscientes de que somos os vasos de barro que transportam o maior tesouro.

Somos nós, homens, mulheres, crianças e jovens desta diocese de Setúbal, gente do mar e da terra que conhece o valor do pão e do vinho, que se dispõe a adorar a hóstia consagrada numa noite longa, onde nunca estaremos sós.

Mas voltemos àquele final de tarde, quando os discípulos se reuniram com o Senhor, para celebrar uma ceia. Sabemos que foi a última ceia que partilharam, mas naquela tarde só Ele mesmo é que sabia. Conseguimos imaginar o que sentiria o Seu coração? Saber tudo o que se iria passar em termos de sofrimento físico, mas acima de tudo solidão, de abandono e injustiça? Maria, a Mãe da Esperança, intuía no seu coração o que estava reservado para o Seu Filho, Jesus, mas não se fala no seu nome, não sabemos onde estava.

Sejamos peregrinos a caminho da casa onde Jesus disse que queria estar com os seus. E paremos perto de uma janela, atentos ao que por lá se estava a passar. A alegria da mesa posta, a partilha do pão, de mão em mão. A determinado momento Jesus levanta-se, pede uma toalha, coloca-a à cintura e começa a lavar os pés dos discípulos…

Naquele tempo, era um gesto próprio dos escravos, na chegada de convidados importantes, em dias de festa. Pedro reage. É natural a sua incompreensão, mas a resposta de Jesus provoca uma rápida concordância, o que não significou que todos tivessem compreendido a dimensão daquele gesto. «Compreendeis o que vos fiz?» perguntou Jesus.

Seremos nós capazes de nos ajoelharmos perante os outros, de servirmos alguém, desta forma tão radical como o Senhor nos mostra? «Compreendeis o que vos fiz?»

É a pergunta que Ele nos faz, a nós, aqui e agora. Compreendemos que Deus se ajoelha diante de nós, para testemunhar o Seu amor, mesmo quando temos os pés sujos da estrada da vida? Compreendemos que o verdadeiro poder é o serviço? Que a verdadeira grandeza é amar até ao fim?

Hoje celebramos a Eucaristia, o sacerdócio e o mandamento novo do Amor. Tudo isto se revela no gesto simples de lavar os pés, um gesto que “grita” ao mundo, que aparenta parecer, tantas e tantas vezes, totalmente surdo. Meus irmãos e irmãs, como é urgente ouvir este grito! Quando olhamos para o mundo no seu todo, quando o nosso olhar e o nosso coração nos localiza na terra de Jesus, na Palestina, em Gaza, na Ucrânia, em tantas crianças sem futuro, em tantas famílias sem teto, em tantas vidas ceifadas pela violência e pela indiferença, quando isto acontece, percebemos o gesto de Jesus?!

O mundo precisa desesperadamente que alguém lave os pés sujos da humanidade, que alguém se ajoelhe diante do sofrimento, que alguém diga com palavras e gestos: «eu não desisto de ti». Perante uma sociedade que se quer alicerçar entre uma pílula do dia seguinte e uma pílula do último dia, temos mesmo de gritar «eu não desisto de ti».

Vivo convicto de que Jesus nos diz isto mesmo, porque Ele não desiste de nós, não desiste de cada um de nós. E pede-nos que façamos o mesmo. Que lavemos os pés a quem está cansado, esquecido, magoado, excluído. Que sejamos Igreja com as mãos na terra suja, lavrada, molhada ou queimada. Que sejamos Igreja com o coração no Evangelho.

Hoje a pergunta de Jesus ecoa no mundo, ecoa em Setúbal, como nunca: «compreendeis o que vos fiz?» E a nossa resposta não pode ser dada apenas com palavras, tem de se dar com a vida, com a minha vida, as nossas vidas.

Que esta noite santa nos lave também a nós por dentro e nos ajude a ajoelhar com Ele, diante da dor do mundo, para que sejamos, com simplicidade e coragem, sinais vivos de um Amor Novo, que serve sempre, mas sobretudo quando o mundo arde à nossa volta.

Mas continuemos perto daquela janela.

Até conseguimos perceber as conversas desentendidas, a palavra traição, a promessa de uma presença Viva até ao fim dos tempos. Vimos a surpresa na cara daqueles homens, gente do mar e da terra que caminhou com Jesus durante três anos por toda a Galileia, a Judeia e a Samaria.  Assistimos ao mistério da consagração do pão e do vinho e a voz de Jesus elevou-se ao falar do Seu corpo e do Seu sangue. Que mistério este, o da Fé que nos une.

Sejamos peregrinos deste mistério, capazes de andar por estradas e caminhos a anunciar que Jesus está Vivo, que se entrega por cada um de nós, em cada Eucaristia, vivida com fé e com esperança.

Sejamos peregrinos deste mistério, capazes de nos levantarmos depois de cada queda, capazes de nos afastarmos dos precipícios, capazes de erguer os olhos do chão e de procurar o céu e as estrelas.

Sejamos peregrinos que caminham de mãos dadas com Maria, como crianças que confiam totalmente na sua Mãe, Aquela que é a Mãe da Esperança. Assim seja.

+ Cardeal Américo, Bispo de Setúbal

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