Homilia do Bispo de Santarém na comemoração dos fiéis defuntos

Louvado seja Deus pela irmã vida,

Louvado seja Deus pela irmã morte

Todos os anos a liturgia de “Todos os Santos” e de “Fiéis Defuntos” nos confronta com o mistério da vida e com o mistério da morte. Lembramos aqueles que já partiram e intercedemos ao Senhor pelo seu descanso eterno. Permanecem algures noutra forma de existência? Ou desapareceram no pó da terra? Apenas resta a lembrança, o amor, a saudade? São questões que nos acompanham continuamente e cuja resposta vamos amadurecendo ao longo da nossa peregrinação terrena. É a interrogação fundamental sempre presente apesar da tentação de a esquecermos. Vem ao de cima de forma mais viva neste dias.

Na liturgia encontramos uma base segura para iluminar esta questão existencial. Segundo um axioma tradicional da Igreja, “Lex orandi lex credendi”, ou seja, acreditamos consoante rezamos, a regra para acreditarmos é a forma como rezamos ou celebramos. Ora, nestes dias, celebramos a festividade de Todos os Santos profundamente associada à dos Fiéis Defuntos. Todos os que crêem em Cristo e vivem n’Ele são chamados a ser santos, ou seja, justificados gratuitamente pela fé, mas todos continuam pecadores e a necessitar do perdão e da oração. Esta vocação e este destino só se compreendem à luz da vida eterna. Rezando ao Pai que está nos céus alimentamos o desejo da comunhão eterna com Ele. A oração é a luz da alma que nos orienta e prepara para a eternidade.

Os santos e os fiéis defuntos falam-nos do fim e do início, de um novo começo, da irmã vida e irmã morte, como se exprimia São Francisco de Assis. É a conclusão do cântico do irmão sol ou cântico das criaturas considerado uma síntese da espiritualidade franciscana e um dos textos mais belos da poesia religiosa. Conclui assim este cântico: “Louvado seja Deus na mãe querida, a natureza que fez bela e forte: Louvado seja Deus pela irmã vida, louvado seja Deus pela irmã morte”. O Santo de Assis via em todas as criaturas um motivo de louvor a Deus pois todas participam da vida do Criador, todas testemunham a sua grandeza e bondade. Mas, não deixa de ser desconcertante que veja a morte, que é o fim e a negação da vida, também como um motivo de louvor. Qual a explicação? À luz da fé, a morte é um caminho para vida. “Se o grão de trigo, caído na terra, não morre permanece só. Porém se morre, dará muito fruto”

É a mesma convicção que nos apresenta o profeta Isaías na primeira leitura: “O Senhor há-de tirar o véu que cobria todos os povos; Ele destruirá a morte para sempre”. Neste trecho, o profeta, do sec VIII a. c., dos mais fecundos e mais representativos do Antigo Testamento, faz várias promessas significativas: Um banquete universal para todos os povos; a revelação que há-de eliminar o véu que impede as nações de O ver, ou seja, há-de manifestar-se a todos os povos, para além do povo judaico; e a promessa ainda mais extraordinária e mais difícil de entender, de que há-de vencer a morte, consequência do pecado, e fazer que todos vivam para sempre em comunhão com Ele.

É oportuno notar que esta promessa é o fio condutor não só dos livros do profeta Isaías mas dos outros livros do Antigo Testamento. Como sabemos a primeira parte da Bíblia integra livros de géneros literários muito diferentes, de oração, de sabedoria, de narrativas históricas, de violência e de vingança, de experiências de pecado e de chamamento à conversão. Mas, no meio desta variedade, há uma linha comum, como um rio que percorre todos os livros, umas vezes subterrâneo outras vezes à superfície, que dá unidade e sentido a todo o Antigo Testamento. Esse fio condutor é a promessa de intervenção de Deus de enviar o Seu Messias para encaminhar os povos para a paz e a fraternidade. O sentido mais profundo do Antigo Testamento, com as suas narrativas de pecado e de conversão, de violência e de procura da paz, é a de um movimento de esperança para a plenitude da vida tal como se mostra nesta afirmação que ouvimos: “O Senhor destruirá a morte para sempre”

A missa de “Requiem” é um hino de esperança que se fundamenta nas promessas de Deus. Os cristãos têm motivos sólidos para viver com esperança, como afirmava São Paulo no trecho da carta aos Tessalonicensses: “Se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, do mesmo modo Deus levará com Jesus os que em Jesus tiverem morrido”. O mistério pascal de Cristo, a sua morte e Ressurreição á base principal da nossa esperança e o sentido mais profundo da nossa vida. N’Ele se realiza a promessa da vitória da vida sobre a morte. Unidos a Cristo vivemos, unidos a Ele morremos, para sempre com Ele viveremos. A vida é um caminho para a morte e a morte um caminho para a vida. A morte estende-se ao longo da vida, torna-se presente em muitas experiências de debilidade, de desilusão, de doença. O Senhor ensina-nos a morrer para nós mesmos e a viver para Ele. Se vivermos para o Senhor para Ele morreremos e com Ele viveremos.

“Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a vida eterna?”, questiona o evangelho. A vida, entendida à luz do resultado final, convida-nos a ver a morte como entrada na vida. Para quem ama a Sua vinda, Deus chega como um amigo e convida: “Entra na alegria do teu Senhor”. O descanso eterno (“Requiem Aeternam”) é a alegria sem fim, a luz plena que pedimos para os que partiram: Dai-lhes Senhor o eterno descanso, que descansem na Vossa Paz. Amen.

Igreja Catedral de Santarém, 2 de Novembro de 2009

+ Manuel Pelino Domingues, Bispo de Santarém

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