No final do ano: sinais de vida e de esperança
É uma grande alegria voltar a ver-vos aqui reunidos nesta Igreja da Santíssima Trindade, numa circunstância tão significativa como é a passagem de ano. Com esta alegria saúdo-vos a todos, dou-vos as boas vindas e exprimo a minha proximidade espiritual e afectuosa a cada um de vós em particular.
Com que sentimentos no coração celebramos esta Eucaristia de final do ano? Com os sentimentos que a Palavra de Deus proclamada quer suscitar e desenvolver em nós: a recordação dos dons de Deus e a acção de graças.
Recordemos os dons de Deus: sinais de vida e de esperança
O hino de S. Paulo “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos cumulou de todas as bênçãos espirituais em Cristo…” convida-nos a dizer com a voz, o coração e a vida a nossa acção de graças a Deus pelo dom do Filho, fonte de todos os outros dons com que Ele enche a nossa existência, a Igreja e o mundo.
Maria é-nos proposta como “ícone privilegiado” da recordação. Toda ela é conquistada pela recordação do que Deus realizou: “grandes coisas fez em mim o Todo Poderoso”. Traz todas estas coisas à memória, medita-as, revisita-as cheia dos afectos do coração, saboreia-as no seu significado de graça e na sua beleza espiritual. Assim, convida-nos a todos – pessoas, famílias, comunidades, Igreja – a cultivar, como ela, a recordação perante os dons recebidos do Senhor, em particular dos que enriqueceram os dias, as semanas e os meses do ano que chega ao seu termo.
Cada um certamente fará a sua recordação pessoal das experiências de graça que porventura só ele e Deus conhecem. Eu, como bispo, desejaria trazer à memória, em acenos rápidos, algumas experiências que tiveram particular relevância na vida eclesial para todos nós e que são sinais de vida e de esperança.
1. A nível diocesano quero recordar, antes de tudo, a “Festa da Fé: Rosto(s) da Igreja Diocesana” com que encerrou o Ano Pastoral dedicado a “Ir ao coração da Igreja. Comunhão e corresponsabilidade na comunidade cristã”. Foi uma verdadeira festa de um povo que deu visibilidade à beleza do rosto da nossa Igreja na sua unidade e pluralidade e irradiou a alegria da fé, a comunhão e a fraternidade na cidade dos homens.
2. Recordo também as celebrações da abertura e do encerramento do Ano Sacerdotal. Foi um ano dedicado, segundo as palavras do Papa, a “favorecer a tensão dos sacerdotes para a perfeição espiritual da qual depende a eficácia do seu ministério” e a “promover o empenho de renovação interior de todos os sacerdotes para um testemunho evangélico mais forte e incisivo no mundo de hoje”. Ajudou a redescobrir a beleza do dom do sacerdócio, a revigorar a fraternidade entre os padres e a cuidar das vocações sacerdotais. Na lógica do Ano Sacerdotal agradeço ao Senhor, particularmente, a ordenação de um presbítero, após três anos sem ordenações, e a entrada de seis novos seminaristas para o nosso Seminário Maior.
3. Como acontecimento maior, mais marcante, gozoso e inesquecível para o nosso Santuário recordo a peregrinação do Santo Padre que trouxe à nossa Igreja e ao nosso país um “suplemento” de espiritualidade, de esperança, de paz e de beleza espiritual de que tanto precisávamos. Aqui em Fátima sublinhou a actualidade da mensagem da Senhora que “veio do Céu, a nossa bendita Mãe oferecendo-se para transplantar no coração de quantos se lhe entregam o Amor de Deus que arde no seu”; e que convida hoje a Igreja e o mundo a um sério exame de consciência, à purificação e à reparação. Nesta linha deixou-nos um estímulo a preparar o Centenário das Aparições a que já respondemos prontamente com um programa para sete anos, que constituem sete luzes para o nosso itinerário espiritual, desde 2010 até 2017. Além disso apontou Fátima como “coração espiritual de Portugal” e “escola de caridade e de serviço aos irmãos”. Foi nesta lógica da caridade que celebrámos o centenário da nascimento da pequena Jacinta sob o lema: “repartir com alegria como a Jacinta”.
4. Por fim, no horizonte da Igreja em Portugal desejo recordar dois acontecimentos. O primeiro é o projecto “Repensar juntos a pastoral da Igreja em Portugal” cujo primeiro esboço está agora confiado à reflexão dos órgãos de corresponsabilidade das comunidades cristãs, das congregações religiosas, dos institutos seculares, dos movimentos, grupos e associações eclesiais. Trata-se de darmos todos as mãos, de nos pormos todos à escuta do que o Espírito diz à Igreja neste momento da história, para um novo despertar de uma fé cansada e para readquirir um nova vitalidade em ordem à renovação e reorganização das nossas comunidades e à ousadia de novos dinamismos da missão, do testemunho do Evangelho numa sociedade plural e em mudança.
O outro facto é a criação do “Fundo Social Solidário”, neste momento de emergência social, para responder mais eficazmente às necessidades de quem sofre as consequências da crise. Este Fundo representa um expoente significativo de toda a acção sócio-caritativa que a Igreja está a levar a cabo em todas as dioceses. Pede-nos um gesto de partilha como testemunho do amor fraterno: “A caridade é a força que transforma o mundo porque Deus é Amor”(Bento XVI).
A recordação dos dons leva-nos à mais viva gratidão para com o Senhor celebrando a Eucaristia e cantando o Te Deum, um hino tradicional de louvor e acção de graças à Santíssima Trindade.
Entrar na nova década com esperança, na força do Espírito
Caros amigos, encerramos o ano de 2010 e iniciamos o de 2011 com a consciência de uma crescente crise social e económica. Despedimo-nos de uma década difícil como nem sequer imaginávamos. Todos experimentamos o mal estar de uma sociedade afectada pelos reflexos da crise, pela escassez do precioso bem do trabalho para todos, pela insegurança do futuro, pelo aumento da pobreza e pelo sofrimento de muitos pobres – uma sociedade psicológica, cultural e espiritualmente cansada, desiludida, esgotada.
O nosso mundo está desorientado por causa da crise do mercado que se julgou omnipotente, dos poderes anónimos de capitais financeiros que escravizam o homem e ditam a agenda política em prejuízo do bem comum universal e ainda por causa de uma globalização que por vezes não tem alma nem rosto. Estamos perante um mundo com corpo de gigante e alma de anão! O mundo precisa de alma, de um suplemento de alma, que só pode provir de Deus.
É precisa a coragem de resistir à decadência moral e social, de suprir à carência inédita de referências e de modelos de valores éticos e espirituais que atravessa a nossa sociedade.
Queremos entrar na nova década com a força do Espírito para criar um tempo de esperança para o mundo. Mas isto requer que sejamos capazes de olhar o momento actual como uma oportunidade histórica para uma conversão (mudança) de mentalidade e de critérios e modos de vida, a nível pessoal, familiar, educativo, empresarial, económico e político, sem nos deixarmos abater pelos inevitáveis problemas e dificuldades. Não se pode continuar a viver como dantes.
O novo ano é um convite a um estilo de vida mais sábio através de um consumo mais sóbrio e sustentável, a uma solidariedade de maior partilha com os necessitados, a uma cidadania social mais consciente e mais forte da parte de todos, a uma nova cultura política de verdade, transparência, honestidade e responsabilidade que ponha o bem comum acima dos jogos, equilíbrios e privilégios do poder partidário, à colocação das necessidades dos mais pobres no topo das políticas económicas; em síntese, a um novo humanismo, a uma nova cultura com fundamentos espirituais e morais. Ouçamos o apelo que o Papa Bento XVI lançou na visita à Inglaterra: <<O mundo foi testemunha dos imensos recursos de que os governos podem dispor quando se tratou de ir em socorro das instituições financeiras entendidas como ‘demasiado importantes para serem votadas ao fracasso’. Não se pode duvidar de que o desenvolvimento integral dos povos do mundo não seja menos importante: eis um empreendimento que merece a atenção do mundo e que é verdadeiramente ‘demasiado importante para ser votado ao fracasso’>>. Isto vale também para Portugal!…
Quando cantarmos o Te Deum, rezaremos: “Socorre os teus filhos, Senhor, que remiste com o teu precioso sangue; salva o teu povo, Senhor, e abençoa a tua herança; sê o seu Pastor e Guia através dos tempos e condu-lo às fontes da vida eterna”. Seja, pois, esta a nossa invocação para o novo ano: socorre, Senhor, com a tua misericórdia o nosso povo no meio do qual graves carências e pobreza pesam sobre a vida de pessoas e famílias impedindo de olhar o futuro com confiança. Concede a todos a luz e a força interior de dar passos corajosos na escolha de um estilo de vida sóbrio, na partilha com os necessitados e de cada um contribuir para criar um futuro de justiça, de solidariedade e de paz. Nós to pedimos por intercessão de Maria, tua e nossa bendita Mãe, Rainha da Paz!
† António Marto, Bispo de Leiria-Fátima