Cuidar da criação, caminho para a paz
No início do Ano Novo, a liturgia da Palavra convida-nos a começar o nosso caminho e a prossegui-lo, dia após dia, com a bênção do Senhor: “O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça resplandecer sobre ti o seu rosto e te seja favorável”.
Estas palavras são como uma “carícia” que Deus reserva para todos e cada um de nós: é-nos comunicada no rosto terno do Menino em Belém e no rosto materno de Maria, cuja Maternidade Divina hoje celebramos. Sim, uma carícia de Deus que testemunha o seu amor terno, a sua proximidade de Pai e Amigo, o seu tomar-nos pela mão e acompanhar-nos, passo a passo, na vida, a sua resposta solícita às nossas invocações, o seu conforto nas dificuldades, a sua consolação nos momentos de provação e de solidão, a sua misericórdia sem limites para com as nossas infidelidades… Uma carícia que tem uma força extraordinária de nos impulsionar a viver o novo ano na fé e na caridade, no amor verdadeiro.
À bênção do Senhor pertencem ainda estas palavras: “O Senhor volte para ti o seu olhar e te conceda a paz”. Também este “voltar o olhar” – que só pode ser olhar de amor – é expressão da carícia de Deus. Só dela nos pode chegar o grande dom da paz.
Neste Dia Mundial da Paz, o Santo Padre convida-nos a reflectir sobre um tema que interpela toda a humanidade: “Se queres cultivar a paz , guarda a criação”. É um apelo à nossa responsabilidade ecológica pela salvaguarda do ambiente e de toda a criação perante as ameaças que afligem o mundo.
Emergência ecológica e a causa da paz
Não podemos esquecer que a nossa geração é talvez a primeira na história a estar consciente de que a vida e a morte dos seres do nosso planeta e, por conseguinte, da humanidade, dependem das opções que forem tomadas no presente. Esta consciência deriva de evidências que se impõem: ar viciado, águas poluídas, solo explorado e degradado, desertificação que avança progressivamente, alterações climáticas, recursos naturais e matérias primas a esgotarem-se, novas doenças que surgem…
Os atentados ao ambiente são tão preocupantes como as guerras, os actos terroristas e as violações dos direitos humanos, afirma Bento XVI. Trata-se de uma verdadeira crise ecológica, de dimensão planetária, que põe em causa o presente e o futuro da criação e da humanidade. Por este caminho, o homem corre o risco de ser engolido pelo produto da sua obra ou de estar a cavar o túmulo debaixo dos seus pés. Não podemos fechar os olhos perante os sinais de alarme.
Reflectir sobre a crise ecológica obriga-nos, antes de mais, a repensar a relação íntima do homem com a natureza. Esta é maltratada porque é mal amada. O grande risco é olhar a natureza apenas com critérios de utilidade, produtividade e lucro; olhá-la como mero armazém de material, como “um montão de resíduos espalhados ao acaso” a usar e consumir sem limites e sem regras. O respeito pela natureza requer um novo olhar.
Os cristãos, frente ao “deserto que avança”, anunciado por Nietzsche, e perante a terra cada vez mais desolada, deveriam aprender a descobrir na profundidade da criação “a escritura das coisas”, as suas lágrimas e os seus louvores.
O jardim da criação: dom de Deus, promessa de vida e casa comum
À luz da fé cristã no mistério da criação, a natureza não é fruto do acaso caprichoso ou do caos. É dom do amor de Deus; é promessa de vida; é casa comum dos homens e, por isso, motivo de contemplação, de louvor, de acção de graças e de responsabilidade.
A Bíblia apresenta-a com a bela imagem do jardim, onde Deus coloca o homem para o cultivar e guardar. O jardim é uma grande metáfora da inteligência e do amor de Deus. Esta inteligência de amor cuida da terra, mas esta é destinada aos humanos. No jardim, o homem descobre os traços de um cuidado amoroso que o precedeu.
O jardim mostra que a terra não é um mero depósito de matérias primas. É um habitat para a circulação das pessoas, do pensamento, da inteligência, dos afectos; é uma morada a partilhar em paz, no equilíbrio entre o trabalho e o recreio, entre os bens a consumir e a beleza a salvaguardar na sua biodiversidade.
Os homens que não cuidam e não têm paixão pela guarda do jardim tornam inabitável e inóspita a terra inteira. A mensagem do Papa contém uma expressão maravilhosa e penetrante a este respeito: “Há uma espécie de reciprocidade: cuidando da criação, constatamos que Deus, através da criação, cuida de nós”.
Quanto mais olharmos a natureza como dom de Deus, tanto maior é a sua preciosidade e maior a nossa responsabilidade. O homem como criatura entre as criaturas é chamado a viver na solidariedade, numa comunhão amorosa e de respeito com toda a criação.
Todos responsáveis pela criação: para uma nova cultura ecológica
“Todos somos, pois, responsáveis pela protecção e pelo cuidado da criação”. A ciência e a técnica, por si sós, não resolvem a crise ecológica. Ela tem raízes culturais e éticas profundas. A falta de respeito pela natureza mostra que o homem não desenvolveu plenamente a sua própria humanidade.
A humanidade global tem necessidade de uma profunda renovação cultural e ética. É indispensável uma mudança cultural, de mentalidade, de critérios, de estilos de vida, que vá à raiz do problema ecológico como problema moral.
Com efeito, trata-se de uma responsabilidade individual e colectiva. Proteger e defender o ambiente não pode ser deixado só à boa vontade dos indivíduos.
Assim, esta crise pode ser uma “oportunidade histórica de discernimento e projectação de novos caminhos”(n. 5). Inspirando-nos na mensagem do Santo Padre podemos indicar, sumariamente, alguns pontos concretos para uma consciência ecológica correcta, madura e responsável, como caminho para paz:
– viver a fraternidade, como atitude fundamental, a relação amorosa com todos os seres da natureza, à boa maneira de S. Francisco;
– recuperar a consciência da interdependência entre homem e natureza, a solidariedade com toda a criação, “inspirada pelos valores da caridade, da justiça e do bem comum”;
– mudar o nosso modelo de desenvolvimento que, muitas vezes, tem em vista míopes interesses económicos a qualquer custo, de modo a que economia e tecnologia fiquem enriquecidas com a componente ecológica;
– considerar a natureza como casa comum de todos os homens e de todas as gerações, que implica a solidariedade com as gerações vindouras de tal modo que não lancemos hipotecas sobre elas nem lhes leguemos em herança um deserto em vez de um jardim;
– promover uma educação ecológica, uma pedagogia do ambiente, através duma aliança entre família, escola, universidade, organizações não governamentais e meios de comunicação social;
– adoptar novos estilos de vida mais sóbrios “nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento”(n. 11). O comportamento de cada pessoa tem sempre um peso e uma consequência. Se a pessoa se deixa cair no laxismo em numerosas formas de poluição ou desperdício, mesmo aparentemente insignificantes, contribui para uma atitude inconsciente, para o vandalismo ambiental, para a tolerância da destruição ou degradação;
– cuidar e proteger, igualmente, a ecologia humana, afirmando o respeito pela vida humana em todas as suas fases, a dignidade da pessoa e a missão insubstituível da família fundada no casamento entre um homem e uma mulher. “Quando a ecologia humana é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental”(n. 12). Como pedir o respeito pela vida ambiental se não se respeita a vida humana?
O testemunho de S. Francisco
Neste ano de 2010 ocorre o 30º aniversário da proclamação de S. Francisco de Assis como Padroeiro dos cultores da ecologia, que nos deixou o belíssimo e inspirado Cântico das Criaturas. Contemplando o seu exemplo aprendemos a amar a criação e a descobrir nela o espelho do amor infinito do Criador: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas; Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo Teu amor; louvai e bendizei o meu Senhor e dai-lhe graças e servi-O com grande humildade”!
Com estes sentimentos desejo a todos vós e às vossas famílias um abençoado Ano Novo!
Leiria, 1 de Janeiro de 2010
† António Marto, Bispo de Leiria-Fátima