«Chamados à conversão permanente» – D. António Marto
“Como é bom e agradável que os irmãos vivam unidos” (Sl 133, 1). Este versículo do salmo traduz bem a alegria de nos encontrarmos nesta missa crismal como membros do único povo de Deus, fiéis leigos, religiosos e pastores, e, particularmente, de sentirmos a fraternidade entre nós, todos chamados ao serviço do Evangelho a exemplo de Cristo. A todos e cada um dirijo a minha fraterna saudação, com particular destaque aos sacerdotes jubilários cujo júbilo e ação de graças partilhamos. Também fazemos memória de sufrágio pelos irmãos que o Pai chamou a si desde o ano passado.
As leituras de Isaías e do evangelho de Lucas evocam a ação do Espírito, que, no dia da nossa ordenação, nos ungiu em Cristo e nos envia a levar os dons de Deus ao seu povo. O sacerdócio é um dom e uma tarefa a cuidar, a reavivar.
Por sua vez, o Ano Jubilar do Centenário da Restauração da Diocese realça ainda mais este aspeto. Como toda a Igreja, também nós temos necessidade de nos renovarmos continuamente para corresponder à missão em cada época, em cada situação existencial e dar frutos. É um caminho de conversão permanente, que Deus nos chama a percorrer, de modo especial a nós ministros do seu povo, para sermos pastores, evangelizadores, missionários ao jeito de Jesus. Por este motivo preparei uma meditação sobre a nossa conversão permanente nos seus diversos aspetos, inspirado no cardeal Martini e no Papa Francisco. Cada aspeto adquire rosto concreto na figura de um santo.
Homem de Deus
O primeiro aspeto desta conversão é teologal. O nosso povo caraterizava o padre, tradicionalmente, como homem de Deus, que crê, reza, adora e dá testemunho para conduzir os outros a Deus. Hoje, no mundo plural e secularizado, o rosto de Deus obscureceu-se para muitos. Nesta situação somos chamados a ser cada vez mais homens de Deus: a mostrar a todos a beleza do amor de Deus que se manifesta no rosto misericordioso de Cristo. Ele é o que de mais precioso podemos oferecer à nossa gente.
Para isso, o Senhor pede-nos que nos voltemos para Ele de todo o coração, que abramos o nosso coração ao seu amor, que ponhamos a nossa mão na sua com toda a confiança, que nos deixemos conduzir como filhos e pastores; que Ele tenha sempre a primazia, acima de tudo. Isto exige de nós escutar Deus e meditar a sua palavra, adorá-lo, fazer oração, falar-Lhe dos homens e mulheres que encontramos e a quem somos enviados.
Desta conversão é exemplo Santo Agostinho buscador inquieto e ardente de Deus: “Como ardia, meu Deus, como ardia em desejos de voltar das coisas terrenas para ti, mesmo ignorando o que querias de mim” até depois exclamar: “Tarde te encontrei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te encontrei… Eu procurava-te fora e tu estavas dentro de mim”.
Cada um pergunte-se: Onde está o meu coração? Que rosto de Deus testemunho e anuncio com a minha vida, o meu ministério e a minha humanidade?
Chamado à santidade no ministério
Reconhecendo o primado de Deus e o seu amor misericordioso comunicado a nós em Jesus, compreendemos que deve mudar o nosso modo de pensar e de se comportar: é aconversão moral. Somos frágeis e necessitados de misericórdia. Trazemos o tesouro do sacerdócio em vasos de barro. Cada um de nós é pastor convertido, ferido curado e curador ferido, apóstolo penitente e pecador perdoado.
Santo Inácio de Loyola incarna este segundo rosto da conversão. Tomou consciência de que era dominado pelas vaidades do mundo e precisava pôr em ordem a própria vida desordenada. Decidiu então encetar o caminho da santidade de vida procurando realizar a vontade de Deus através do discernimento espiritual.
Este caminho permanece atual para a nossa santificação no e através do ministério da Palavra, dos sacramentos e do acompanhamento pastoral; no amor à Igreja como Corpo de Cristo com a generosa disponibilidade a servi-la onde é preciso e a sofrer por ela; e na resistência à tentação do mundanismo, isto é, da autorreferencialidade e autossuficiência, do narcisismo, do comodismo, do clericalismo, que corroem a alegria da comunhão e o entusiasmo da missão. É o amor e o espírito de Cristo que nos impele e nos leva a amar em tudo o que fazemos e dizemos.
Contemplativo na ação
O nosso ministério interiormente vivido nas diversas atividades leva-nos à conversão mística que consiste na experiência do gosto, do gozo e do sabor da presença de Deus, da intimidade do seu amor trinitário, do sentir como é delicioso ser tocado por Deus, como diz Santo Inácio nos Exercícios Espirituais: “Não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas de Deus interiormente”, ou S. Francisco Marto: “Gosto tanto de Deus!…Oh, como é Deus!”, ou ainda como Santa Jacinta Marto: “Gosto tanto de Nosso Senhor. Às vezes sinto cá dentro um lume que arde mas não queima!”
A conversão mística torna-nos contemplativos na ação, a exemplo de santa Teresa de Ávila. Depois de vinte anos de mediocridade no mosteiro, como ela diz, entrou por graça nesta experiência na qual contempla o Senhor presente nela, em cada membro do seu Corpo místico, em cada pessoa e em cada situação, e também contempla toda a realidade n’Ele.É uma mística de olhos abertos! Deste modo, nós podemos e devemos ser contemplativos no ministério e possuir a arte da mistagogia para iniciar os fiéis nesta experiência gozosa e saborosa da fé, hoje indispensável. Um coração cheio de Deus é um coração feliz e contagia os que estão à sua volta!
Com inteligência espiritual do mundo contemporâneo e da sua evangelização
Nesta sequência insere-se a chamada conversão intelectual que permite adquirir uma inteligência espiritual da situação do mundo e da Igreja. É fruto da iluminação da fé na oração e atenção ao Espírito, mas também da fadiga mental sobre o conhecimento da realidade sociocultural. É uma conversão necessária para ler e avaliar os sinais dos tempos: discernir o positivo e o negativo, encontrar a orientação reta num mundo difícil e não ceder ao pessimismo estéril ou ficar atemorizados. Num mundo pluralista, num universo cultural fragmentado, confuso, desorientado, um pastor deve adquirir luz e convicções profundas para uma evangelização credível. O Beato Cardeal Newman é um grande exemplo: distinguiu-se não só pela piedade e moralidade, mas também pela inteligência espiritual da modernidade, sabendo julgar o que tinha de bom e de mau, dar razões da própria fé e estabelecer um diálogo cordial com a sociedade e a cultura.
Conversão pastoral e missionária
Todas as dimensões da conversão convergem na conversão pastoral e missionária, isto é, em “deixar que a face do Deus Bom Pastor nos ilumine, nos purifique, nos transforme e nos restitua plenamente renovados à nossa missão”, à doce e reconfortante alegria de evangelizar. “Que ninguém se sinta ignorado ou maltratado, mas cada um possa experimentar a atenção carinhosa do Bom Pastor” (Papa Francisco).
Esta conversão é bem exemplificada por S. João XXIII ao proclamar na abertura do Concílio que “a Igreja prefere usar a medicina da misericórdia do que as armas da condenação”; pelo Beato Paulo VI ao apresentar a parábola do samaritano como o paradigmada espiritualidade do Concílio e da Igreja, de olhar o mundo e os homens não com desprezo, mas com imensa simpatia, algo que os seus sucessores continuaram. Hoje é o Papa Francisco que convida toda a Igreja a ser “hospital de campanha”, Igreja em saída ao encontro dos feridos e afastados, com o bálsamo da misericórdia divina.
“Não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, nos nossos templos, sendo necessário passar de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (EG 15). A proximidade, o encontro, a simplicidade, o diálogo, o acompanhamento, a escuta, a compaixão, a misericórdia sejam o nosso método missionário para fazer chegar a todos a Boa Notícia, a alegria do Evangelho que é Cristo.
Ao renovarmos as promessas sacerdotais, peçamos à Virgem Santa que, com a sua intercessão, nos ajude a responder à graça da conversão que o Senhor nos oferece neste tempo difícil, mas cheio de esperanças.
† António Marto
Catedral de Leiria, 29 de março de 2018