Homilia do bispo de Lamego na solenidade de Santa Maria, Mãe e Deus, Rainha da Paz

1. A Igreja Una e Santa celebra neste Dia de «Ano Bom», como é usual chamar-se o Primeiro Dia do Ano Civil, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associada, desde 1968, a celebração do Dia Mundial da Paz, este Ano subordinada ao tema «Bem-Aventurados os obreiros da paz». Na sua Mensagem para este 46.º Dia Mundial da Paz, o Papa Bento XVI põe a nu diante dos nossos olhos a desumanidade do homem para com o seu semelhante, que se manifesta, não apenas nas guerras, conflitos internacionais e regionais e atos terroristas, mas também nas violações dos direitos humanos mais elementares, como é o direito à vida desde o seu verdadeiro início até ao seu fim natural, sem esquecer a estrutura natural do matrimónio, o direito à liberdade, que requer a necessária educação e abertura de todos para o bem comum, para gerar uma cultura de sã convivência, de benevolência e de perdão. Não pode ser esquecido, e tem de ser promovido,  um verdadeiro clima de justiça social, para que todos os seres humanos se possam sentir irmãos e sujeito de dignidade na família, no trabalho, na escola, em toda a parte. Todas as instituições humanas, da família, à política, à justiça, à escola, à religião, têm a sua razão de ser no serviço desinteressado e apaixonado que prestam em prol da dignificação de cada ser humano. A família, célula basilar da sociedade humana, tem de ser protegida e defendida de tantos sórdidos ataques que de toda a parte lhe são movidos. Se não defendemos a família natural, é toda a comunidade humana que fica seriamente ameaçada.

 

2. Verdadeiramente, o serviço da Paz deve envolver-nos a todos e reclamar de todos, todos os dias, as nossas melhores energias. O serviço da Paz é um apelo permanente à nossa sabedoria, responsabilidade e pedagogia. O respeito e o amor mútuos cultivam-se, aprendem-se, praticam-se e ensinam-se. Têm de estar bem acesos no nosso humano coração. O que fazemos aos nossos irmãos e dos nossos irmãos, que atenções nos merecem, como olhamos para eles e por eles? Quando deixamos prosperar fundamentalismos, totalitarismos e nacionalismos, fica ameaçada a vida humana, a família, a educação, a liberdade religiosa. Vale a pena lembrar, para que a nossa consciência permaneça sempre lúcida e sensível, que, no ano de 2012 que ontem terminou, mais de 105 mil cristãos foram assassinados, pelo simples facto de entrarem numa igreja, de irem à catequese, ou de ostentarem símbolos cristãos. 105 mil cristãos. 1 em cada 5 minutos. Humanidade, o que fizeste de ti mesma?

 

3. A Paz permanece, portanto, para nós um desafio imenso e intenso, dado que os índices de ódio, de intolerância, de corrupção, de desrespeito e de ganância são cada vez mais elevados motivando uma exploração desenfreada e irresponsável da bondade e da beleza do nosso planeta, decorrendo daí um aumento preocupante dos pobres e deslocados da terra e uma degradação cada vez mais acentuada do ambiente desta casa comum da humanidade. No meio desta lixeira que vamos produzindo, também é notório que cresce cada vez mais uma sociedade indiferente, insensível, demente, dormente e anestesiada, sem amor nem dor nem alegria, simplesmente adormecida no divã dos seus egoísmos, ideologias e comodismos!

 

4. Muita gente tem falado e vai continuar a falar dos pobres e da crise económica e do cada vez maior buraco de ozono, com muitos números e números muito altos, muito saber e elevada competência técnico-científica. Mas nós, que vivemos do Evangelho, estamos avisados para não ficarmos preocupados quando ouvirmos falar destas coisas e quando virmos estas coisas acontecer (Lucas 21,5-28). E também sabemos que a única crise verdadeira e boa, verdadeira porque boa, acontece quando o Evangelho embate na nossa vida, e a põe em crise, fazendo cair os nossos mais estudados e requintados sonhos, projetos e planos (Isaías 8,9-10), e fazendo nascer caminhos novos e germinar mundos insuspeitados, que Isaías descreve e desenha com rios e flores a despontar no deserto.

 

5. É assim que, no Evangelho deste Dia (Lucas 2,16-21), e contra toda a estudada lógica e frios calculismos humanos, é aos pastores, que são pobres, desprezados e marginalizados pelos olhares ditos civilizados, que se abre o céu e ouvem um recital de música divina, e é a eles ainda que chega a Grande Notícia e correm ao encontro do Pobre e falam do que ouviram e deixam as pessoas maravilhadas! E de Maria, a Senhora deste Dia, é dito que «conservava todas estas Palavras que acontecem e não esquecem, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (Lucas 2,21). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em sintonia com o «ventre de misericórdia do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome (Lucas 2,21).

 

6. De Deus vem sempre um mundo novo. Maravilhoso. Tão novo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

 

7. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria – também pobre, também Feliz, Bem-aventurada –, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

 

8. Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

 

9. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

 

10. Senhora e Mãe de janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

 

11. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos nós e para todos os irmãos que Deus nos deu! Ámen!

D. António Couto, bispo de Lamego

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