Homilia do bispo de Lamego da MIssa Crismal

1. «O Espírito do Senhor sobre mim» (Isaías 63,1). Com estas palavras intensas, precisas e preciosas, o profeta Isaías confessa a sua identidade recebida, em acusativo, face a Deus. Ou não fosse o profeta bíblico um sub-jectum, um submetido, alguém que é quem é, só e quando e porque colocado sob, portanto, em acusativo, um sujeito, sub-jectum, não em nominativo, mas em acusativo em relação a Deus, às ordens de Deus, ao serviço de Deus, que a Deus responde sempre e só: «Eis-me aqui», não na minha, mas na tua «plantação, Senhor» (Isaías 63,3).

2. «O Espírito do Senhor sobre mim» (Lucas 4,18). Jesus, para se dizer na sua apresentação na sinagoga de Nazaré, pede emprestadas estas palavras a Isaías, para depois no-las restituir plenificadas, perfumadas com o «bom perfume» (2 Coríntios 2,14-15) do anúncio do Evangelho aos pobres, a alegria, a luz, a liberdade, o ano da graça, a enchente Palavra de Deus a nós mansamente dita e por nós sempre com emoção e alegria respondida. É o tempo novo, o kairós, estabelecido para sempre no meio de nós. O kairós é o tempo da graça anunciada e respondida, dada e recebida, porque é o tempo da enchente da Palavra interpelante de Deus e da nossa resposta boa a Deus.

3. Jesus levantou-se para fazer a leitura litúrgica (anaginôskô), e sentou- se para fazer a homilia. E «Os olhos de todos», informa-nos o narrador, «estavam fixos (atenízô) nele!», num misto de espanto, de encanto e de esperança. É breve e intensa a homilia de Jesus, que disse somente: «Hoje foi plenificada (peplêrôtai: perf. pass. de plêróô) (passivo divino!) esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21). Quer isto dizer que a Escritura saltou do plano da folha de papiro e ganhou corpo, um corpo. Enchente da Palavra de Deus que se faz rosto, que deve, portanto, ser olhado, acolhido, contemplado, em clave de escuta qualificada. Aquele Hoje (sêmeron) tornou-se clássico nas homilias dos Padres gregos, para fazer chegar a Palavra de Deus ao nosso chão. É grandemente sintomático que, nesta sua primeira apresentação, Jesus não diga nada de novo! Na sua boca estão só palavras antigas!

Excelente maneira de Jesus se apresentar como «Filho da Escritura», Leitor e conhecedor da Escritura: lê os Profetas, concretamente Isaías, e pede-lhe emprestadas as Palavras, e, na sua homilia reclamando o nosso ouvido como uma pátria para a Palavra Hoje, aponta para a Lei, concretamente para o Deuteronómio, que é o Livro do «Escuta, Israel!», e em que o Hoje se faz ouvir por 70 vezes!

4. «O Espírito do Senhor sobre mim». É assim que nós, Hoje, aqui reunidos em unum presbyterium, para nos dizermos, temos de receber de Jesus as mesmas palavras que Ele próprio pediu emprestadas e a que deu sentido pleno, corpo e rosto, fazendo-as sair da superfície plana da folha de papiro. «O Espírito do Senhor sobre mim» constitui, de facto, a maneira mais bela e profunda de o presbitério de uma Diocese poder afirmar em uníssono a sua identidade diaconal, e não patronal.

É mesmo a única maneira de nós podermos dizer quem verdadeiramente somos. Algumas formas verbais que podemos pedir outra vez emprestadas a Isaías e a Jesus podem ajudar-nos a perceber melhor a grandeza e a dignidade da nossa vocação e missão: ungidos e enviados para anunciar o evangelho aos pobres.

5. Guardemos connosco, Hoje, sobretudo, este «Ungidos». Somos, então, um presbitério de Ungidos, desde o bispo, aos sacerdotes, aos diáconos. Ungido diz-se em hebraico Mashîah, e em grego Christós, termos que, em português, soam Messias e Cristo. O Ungido por excelência é, então, Cristo, Jesus Cristo, Jesus Ungido, e d’Ele todos sabemos que, enquanto Ungido com o Espírito Santo, passou pelo meio de nós fazendo o bem e curando e libertando e amando até ao fim, intensa e plenamente, sem pausas nem bemóis, porque Deus estava com Ele (Actos 10,37- 38). Se o Ungido é Cristo, então nós somos outros Cristos, porque somos igualmente Ungidos. E se somos outros Cristos, então a referência da nossa maneira de viver terá de ser também sempre Cristo. Temos, então, de nos revestir de Cristo (Romanos 13,14; Gálatas 3,27; Colossenses 3,12-14), de fazer nosso o estilo de vida de Cristo, manso e humilde, orante, feliz, evangelizador, apaixonado, pobre, despojado, ousado, próximo e dedicado. Só assim, configurados com Cristo, cristificados, podemos viver e agir in persona Christi Capitis ou in persona Christi Servitoris, na pessoa de Cristo Cabeça do seu Corpo, que é a Igreja, ou na pessoa de Cristo Servo do seu Corpo, que é a Igreja. É assim que dizemos hoje, nesta Quinta-Feira Santa, a nossa identidade Sacerdotal e Diaconal.

6. Mas também vós, caríssimos Fiéis Leigos, baptizados e crismados, sois, na verdade inteira, outros Cristos, porque fostes Ungidos, também vós, com o óleo do Crisma, que recebe o seu nome de Cristo. Cristo significa Ungido. Crisma significa Unção. Também vós, caríssimos fiéis leigos, fostes Ungidos na fronte, no Baptismo e na Confirmação, com o óleo do Crisma. Além de Ungidos na fronte, no Baptismo e na Confirmação, os Sacerdotes foram ainda Ungidos nas mãos com o mesmo óleo do Crisma, e o Bispo foi-o ainda na cabeça. Também as igrejas e os altares são ungidos com o óleo do Crisma no dia da sua dedicação.

7. Mas não podemos ficar só pelo exterior – a fronte, as mãos, a cabeça –, e pelo pouco óleo, tão pouco que mal se vê e mal se sente, com que costumamos fazer esta unção. Quando lemos, na Bíblia, relatos de Unção com óleo, por exemplo, quando Samuel unge Saul (1 Samuel 10,1) ou David (1 Samuel 16,13), constatamos logo que Samuel derrama na cabeça de Saul e de David um vaso cheio de óleo, de modo a encharcar os cabelos, os vestidos e a regar ainda o próprio chão. Somos então levados a perguntar: porquê tanto óleo, se acaba por escorrer e se perder no chão? E a resposta é: derramando tanto óleo na cabeça, vê-se que ficam empapados os cabelos, os vestidos, e acaba por escorrer para o chão. Mas o povo bíblico vê ou compreende ainda mais, muito mais, e é para este mais que é preciso chamar a atenção. O povo bíblico compreende ainda que parte desse óleo em grande quantidade derramado na cabeça, entra para dentro da cabeça, e vai banhar o interior do homem, vai banhar o coração.

8. Aí está então a verdade da Unção com o óleo do Crisma que fazemos na fronte, nas mãos ou na cabeça. Na verdade, é no coração que somos Ungidos. E se a Unção feita na fronte, nas mãos ou na cabeça pode sempre ser lavada com um pouco de água e sabão, a Unção feita no coração é indelével, imprime carácter, não pode mais ser cancelada. É assim, amados irmãos Ungidos no coração, que não podemos mais deixar de ser quem somos, outros Cristos: eu, bispo; vós, sacerdotes; vós, diáconos; vós, fiéis leigos.

9. É este óleo do Crisma, com que todos somos ungidos no coração, identificando-nos assim com Cristo, que vai ser, nesta Missa Crismal, confeccionado e consagrado pelo Bispo, com o testemunho e cooperação dos sacerdotes. Vão igualmente ser benzidos o óleo dos enfermos, destinado a servir de remédio e de alívio aos doentes, e o óleo dos catecúmenos, destinado a preparar e dispor os catecúmenos para o Baptismo.

10. O óleo do Crisma que vamos consagrar, e os óleos dos enfermos e dos catecúmenos que vamos benzer, constituem, no meio de nós, um autêntico manancial ou programa de vida. Igual ao de Cristo. Outros Cristos, Ungidos no coração, para levar o anúncio do Evangelho a todos os nossos irmãos. Se somos outros Cristos, Ele está connosco, em nós, no meio de nós. A messe e a plantação são d’Ele.

A Ele a honra, a glória e o louvor para sempre. Amen.

+ António Couto

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Agência ECCLESIA

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