Homilia do bispo de Coimbra no dia de Natal

“O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem”.

Voltamos à alegria da celebração do Natal e a reconhecer o plano de Deus, que mantém tudo o que existe e lhe oferece a possibilidade de caminhar firme na esperança da glória para a qual foi criado.

Esta é a razão de ser e o sentido da vinda ao mundo de Seu Filho Jesus Cristo, cantada no prólogo do Evangelho de S. João, agora escutado.

A história da humanidade tem sido lida de muitas formas ao longo dos tempos, tendo em conta fatores de tipo diverso. Nos últimos tempos, dominaram os fatores de caráter político, económico, social, em detrimento de outros mais de caráter filosófico ou teológico. Inclusivamente a perspetiva religiosa, constitutiva do ser humano e que está na origem das Sagradas Escrituras, foi relegada para segundo plano ou mesmo para um esquecimento deliberado.

Não admira, portanto, que o espírito do natal cristão, tal como muitas outras dimensões importantes da realidade humana tenham perdido o seu lugar dentro do panorama do que marca as pessoas. Pouco a pouco, o natal tem sido vítima de uma certa erosão no seu conteúdo ou tem visto a sua identidade substancial ser substituída por alguns elementos de caráter derivado ou mesmo acidental, dos quais o mais visível tem sido o consumismo.

O Evangelho de S. João oferece uma chave teológica de leitura da história humana, que é uma história de salvação. Ela parte da realidade do Verbo que estava com Deus, era Deus, por meio do qual tudo foi feito, veio ao mundo e ilumina todo o homem, para lhe abrir os horizontes da salvação.

Quem já experimentou viver a sua história pessoal inserido neste dinamismo de luz de Deus que se projeta em nós, reconhece a grandeza do Senhor, que continua a vir ao seu encontro como luz que aquece, orienta e sustenta. Todos nós podemos ler a história da nossa vida a partir desta maravilhosa possibilidade de estar com Deus e em Deus, encontrando aí a nossa maior alegria e consolação.

A história do nosso tempo, sem esperança e sem futuro, marcada por dramas, divisões e desumanidades, parece cada vez mais poder ser lida como a história da ausência do Verbo de Deus da terra dos homens: “Estava no mundo e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam”.

Não seriam graves as consequências desta fuga a Deus, se se tratasse simplesmente de uma mudança nos costumes do natal ou no que diz respeito a uma ou outra questão cultural. Grave é o facto de a rejeição de Deus por parte das suas criaturas, significar igualmente uma perda do sentido do homem e do respeito que lhe é devido. A história da humanidade passou a ser a história da política, da economia, da sociologia, ou seja, mais uma história das circunstâncias e condições em que vive o homem, do que a história do próprio homem nos seus valores, nas suas alegrias e esperanças, na sua realização enquanto ser criado para ser feliz.

Esta mentalidade e este modo de ser e de estar minou os fundamentos da cultura humana e atingiu inclusivamente a fé cristã e a vida da própria Igreja. A humanidade tornou-se muito débil nas suas convicções, nos seus valores e na procura da verdade de si mesma; a comunidade cristã tornou-se igualmente débil na sua fé, e deixou-se influenciar mortalmente pelo espírito da cultura vigente, que não teme a Deus nem respeita o homem. Jesus Cristo, o Verbo de Deus, o Senhor e Salvador do Mundo passaram a ter um lugar secundário na vida dos cristãos batizados. O seu lugar foi ocupado por uma cultura, por vezes, contrária à fé, por valores alheios aos veiculados pela verdade do Evangelho e por práticas de vida que são autênticos contratestemunhos.

“Veio para o que era seu e os seus não O receberam”. Só assim foi possível uma Europa cristã pelo batismo e de matriz judaico-cristã pela cultura, assumir os contravalores que primeiro a seduziram e agora a destroem.

O que este dia tem para nos anunciar de novo é a certeza de que o espírito do natal é o único que nos pode salvar. O encontro de Deus com o homem e do homem com Deus, no nascimento de Jesus em Belém e nas nossas vidas quotidianas, é inspirador de todas as atitudes necessárias à nossa felicidade. As nossas famílias, a nossa sociedade, a pessoa humana não se salvam, não se realizam, nem são felizes sem o amor que no natal aprendemos e que é encontro, dádiva, solidariedade, fraternidade.

Sem espírito de natal podem salvar-se políticas, economias, direitos, privilégios… mas não se salva a pessoa digna, feliz, que se sente sujeito do seu presente e do seu futuro. Sem espírito de natal tornamo-nos objeto dos negócios discretamente realizados entre os estados democráticos ou totalitários, ficamos à mercê dos detentores da economia local ou mundial, somos joguetes dos malabaristas do setor financeiro e reféns dos que, sob a aparência da modernidade, pervertem o justo e reto ordenamento ético da sociedade.

Esta celebração leva-nos a decidir, pessoalmente, em família, como comunidade cristã, voltar ao espírito de natal, que a fé cristã nos anuncia. Nós, que vimos a Sua glória, nós que contemplámos a Sua luz, nós que acreditámos no Seu nome e nos tornámos filhos de Deus, nós que da Sua plenitude recebemos graça sobre graça, havemos de ser protagonistas da novidade de Deus e do homem.

Esta celebração convida-nos a interiorizar a fé no Senhor Jesus Cristo nascido em Belém e a adotar na vida a cultura gerada pelo espírito do natal.

A Nossa Senhora, a primeira a acolher Jesus no seu regaço, no seu coração e na sua casa, peçamos que nos ensine a recebê-l’O e a encher da sua novidade a nossa casa e o nosso mundo.

Coimbra, 25 de dezembro de 2011

D. Virgílio do Nascimento Antunes, bispo de Coimbra

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