Homilia do bispo de Coimbra na solenidade da Imaculada Conceição

Nesta Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, a Liturgia proclama o sonho de Deus que, “do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo (…) para sermos um hino de louvor da sua glória” (Primeira Leitura).

Ao fazer referência ao pecado da desobediência e da infidelidade usando uma linguagem poética, o autor sagrado do livro do Génesis dá-se conta da maravilhosa vocação do ser humano que respeita a sua condição original, mas também de todas as ruturas que pode criar e da degradação a que pode chegar ao desrespeitar a sua liberdade e responsabilidade. De acordo com a linguagem do Génesis, estamos sempre a fazer a experiência da vergonha de negarmos a nossa condição humana, de nos sentirmos enganados por nós mesmos e de sermos protagonistas da divisão e da mentira na relação com os outros e com Deus.

A revelação bíblica leva-nos a compreender por meio da linguagem teológica, por um lado a nossa boa e bela condição de criaturas humanas e de pessoas, segundo a iniciativa criadora de Deus e, por outro lado, o estado de desordem interior e exterior quando pelo pecado nos desviamos dos caminhos de realização que nos são propostos.

Este texto da Escritura é fundamental para a compreensão daquilo que é o Homem segundo a conceção judaico-cristã, o cume da criação, saído das mãos Deus como o sinal maior do Amor que O define e chamado à existência por meio de uma palavra solene: “façamos o Homem à nossa imagem, à nossa semelhança” (Gn 1, 26). Ao contrário do que frequentemente se afirma, a antropologia bíblica constitui um autêntico hino à grandeza do ser humano e não vê nele o ser degradado e pecaminoso como no-lo pretendem afirmar as caricaturas produzidas por muitos autores da literatura atual. O que a revelação judaico-cristã constata é que a nossa inteligência, vontade, liberdade, capacidade de relação, abertura ao transcendente, vocação para a bondade e a beleza, que nos situam no plano da igualdade e semelhança com Deus, quando pervertidas, se tornam as armas mais mortíferas levantadas contra nós.

Toda a literatura sagrada do Antigo Testamento nos oferece um olhar crente sobre a história do povo hebreu, que pretende mostrar-nos o que essencialmente somos segundo o plano criador de Deus e aquilo que nos tornamos quando dele nos afastamos. Sobressai sempre o desafio a percorrermos o caminho da autenticidade, da fidelidade e da verdade, que outra coisa não é senão o desafio a realizarmos aquilo que essencialmente somos, enquanto seres humanos e criaturas amadas de Deus. A Bíblia apresenta-nos uma história da graça e do dom amoroso de Deus, por um lado, e uma história de muitas negações e fugas da parte do Homem, por outro. Conclui sempre com a abertura de propostas novas e portas abertas ao futuro e à esperança, como acontece no texto que hoje escutámos – ao pecado e à desordem e destruição que provoca, pode sempre suceder-se a aurora de uma nova era: a antiga Eva da narração bíblica torna-se a “mãe de todos os viventes” e, em Maria, a Imaculada Conceição, torna-se a Mãe de Jesus Cristo, a Porta da Esperança e da Salvação.

A Liturgia da Palavra enquadra a celebração da Solenidade da Imaculada Conceição no arco da História da Salvação. Primeiro, apresenta-nos o homem e a mulher originais, o ser humano, no jardim da felicidade e na realização da sua condição, depois mostra-nos a humanidade a passar pela experiência da negação e escravidão com as suas consequências, para finalmente nos dizer que é sempre possível o Homem reencontrar a possibilidade de uma nova abertura à esperança, de se refazer e recriar. Eva, a “mãe de todos os viventes” do livro do Génesis e Maria, a mãe de Jesus, do evangelho de S. Lucas, são os sinais de que a nossa condição humana nos abre sempre a novas esperanças e a infinitas possibilidades de reencontro. Tanto a antiga como a nova mulher apontam para Jesus Cristo, a eterna novidade e a eterna esperança, o Centro do Tempo, da História e do Homem.

Ao apresentar-nos Jesus Cristo como o Filho do Altíssimo e Filho de Maria, a fé cristã oferece-nos a realização plena do Homem livre e, por isso, aberto a Deus e aberto aos outros até à oferta total de Si mesmo. Em Maria, a mãe de Jesus, a mesma fé oferece-nos a disponibilidade total para a verdade, a fidelidade e a entrega no serviço: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”; condição para a realização da maior expectativa e esperança do povo crente, a incarnação da última e definitiva Palavra de Amor de Deus, o Seu Filho Jesus Cristo.

Será que o modelo bíblico de leitura da realidade tem pertinência ainda hoje? Terá a fé cristã algo de essencial a comunicar em ordem ao renascer da esperança no nosso tempo?

Numa leitura porventura simplista das dificuldades que agora se vivem, os problemas do planeta resumem-se às questões da distribuição da riqueza, das condições de vida de acordo com determinados padrões económico-sociais, do trabalho como meio de sustentação e realização, de geografia humana desequilibrada, da ecologia e preservação da natureza ameaçadas, do modo como as pessoas se sentem: bem ou mal, felizes ou infelizes. Questões importantes, mas que podem não ir às causas reais dos problemas que se vivem e muito menos à central questão do que é o Homem, qual a sua orientação, quais as suas escolhas e opções, quais os horizontes que orientam a sua vida.

Os problemas do nosso tempo não se resolvem somente com o recurso às melhores operações técnicas, mesmo que assentes nos mais avançados dados científicos. Eles são acima de tudo problemas humanos e reclamam soluções humanas. É preciso ir às causas reais e mais profundas, que se situam dentro de nós, e que têm a ver com o tipo de relações que vivemos, com o ambiente familiar em que crescemos, com a educação que recebemos, com os valores que professamos.

A partir da fé cristã, olhar para Maria como criatura humana, santa, imaculada, serva do Senhor, mãe e serva dos homens, cheia de amor por todos os seus filhos, mulher mais bela e mais feliz, leva-nos a compreender os fundamentos da nossa esperança, que não assenta em banalidades, mas no que de maior e melhor Deus pôs nos nossos corações. Ao olhar para o fruto do ventre puríssimo de Maria, Jesus Cristo, compreendemos o que é a liberdade frente a tudo, o amor livre de interesses egoístas, a justiça e a solidariedade baseadas na fraternidade e assentes no valor da pessoa por si mesma.

Que esta celebração bem como o Natal que se avizinha, nos ajudem a ir ao essencial, mesmo que seja à custa da renúncia a muitas futilidades com que a sociedade vazia de sentido e de esperança teima em sufocar-nos. A sociedade espera, tanto da Igreja como da Universidade, sinais de uma cultura e de uma fé que vão em maior profundidade, que apontem metas mais ousadas e mais consentâneas com a nossa condição.

Que a Imaculada Conceição, nossa padroeira, nos conduza a Jesus Cristo e a saborear a alegria da Sua presença nas nossas instituições e nas nossas famílias neste natal.

Coimbra, 8 de dezembro de 2011

D. Virgílio do Nascimento Antunes, bispo de Coimbra

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