Homilia do bispo de Coimbra na Missa da Ceia do Senhor

SÉ NOVA, COIMBRA, 2012

Na noite em que ia ser entregue, o Senhor instituiu o memorial do seu amor e deixou-nos este admirável sacramento da caridade, a Eucaristia que celebramos, A Última Ceia resume a totalidade da vida de Jesus e traça as linhas que devem presidir à vida de todos os que se assumem como discípulos e partilham agora o mesmo Veio ao mundo para salvar uma humanidade perdida e, num gesto inaudito de aniquilamento da sua condição divina, assumiu a nossa humanidade; deu-se no encontro com as multidões a quem anunciou palavras de vida eterna e a quem acolheu com um coração cheio de misericórdia; ofereceu-se nos acontecimentos quotidianos, quando aceitou os sacrifícios da vida e distribuiu gestos exigentes de amor; entregou-se à morte quando a vontade do Pai se lhe apresentou como o gesto definitivo para a salvação dos “Isto é o Meu Corpo; isto é o Meu Sangue”, são as palavras carregadas de sentido, que trazem consigo todo o peso de uma vida já vivida no amor e agora aberta ao amor até ao fim. Toda a sua vida constituiu um gesto de disponibilidade diante da vontade do Pai, foi uma contínua apresentação para o que fosse necessário e sem quaisquer reservas. As palavras da Última Ceia, “Isto é o Meu Corpo, isto é o Meu Sangue” constituem a declaração perfeita dessa disponibilidade total e equivalem a outras expressões das Escrituras, como “eis-me aqui, ó Deus para fazer a Vossa vontade”, “aqui estou” ou “faça-se em mim segundo a Vossa palavra”. Mais do que palavras são atitude, realidade sentida e vivida; trazem consigo o peso do mundo pelo qual se entrega nas Os discípulos, são convidados a realizar o mesmo gesto em sua memória.

Todos nós partilhamos do mesmo Pão e do mesmo Cálice, e sempre que celebramos a Eucaristia cumprimos uma ação litúrgica que, pela graça do Espírito Santo, atualiza os efeitos da sua paixão, morte e ressurreição. Por sua vez, enquanto discípulos sentimo- nos chamados a uma atitude de vida semelhante à sua e a incarnar a realidade que celebramos. Como Jesus oferecemos a nossa vida ao Pai, aceitamos voluntariamente a sua vontade até ao fim e incarnamos no sacrifício de nós mesmos em favor dos irmãos as mesmas palavras “Isto é o Meu Corpo, isto é o Meu Sangue”.

Na celebração da Eucaristia realizamos de forma ritual o memorial do sacrifício de Jesus Cristo e a expressão da nossa atitude de vida. Ela é, deste modo, o sacramento da caridade de Cristo e tende a ser também o sacramento da nossa caridade. Dela brota toda a graça de que precisamos para nos identificarmos com Cristo, numa atitude semelhante à sua: morrer para dar vida.

O texto do Evangelho de S. João oferece-nos um dos mais significativos ícones do modo de ser cristão. Entre os muitos valores expressos no Evangelho por meio de palavras e entre os valores expressos nas mais belas páginas da literatura universal, sobressai este quadro acessível à compreensão de qualquer ser humano: Jesus, Deus e Homem, que se dobra diante de qualquer pessoa, por mais pequena que seja, disposto a lavar todas as suas máculas, morais ou espirituais, sejam elas quais forem.

Não encontramos quadro mais expressivo do modo de ser de Deus e do modo como trata os seus filhos. Não há outro sinal mais claro do que é um ser humano na relação com outro ser humano. Aquilo que as palavras não dizem, mostra-o uma pessoa ajoelhada diante de outra pessoa, não constrangida nem humilhada, mas inteiramente Procuramos frequentemente os fundamentos mais sólidos para justificar o amor de um ser humano a outro ser humano ou para ajudar a compreender o mandato de Jesus, “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. Não precisamos de outro fundamento senão o facto de sermos pessoas, criadas de rosto voltado umas para as outras, que só podem construir-se na dádiva recíproca, que não podem elevar-se sem elevar consigo os outros.

Ao apresentar Jesus a lavar os pés aos discípulos, o Evangelho pretende, por um lado, enfatizar a atitude de Deus, que é amor e nos respeita na nossa condição humana, cheia de dignidade; por outro lado, proclama que somente no amor ao próximo nos humanizamos e exprimimos a dignidade da nossa condição.

“Deixo-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”. Foi a palavra conclusiva do texto do Evangelho há pouco escutado. Reconhecemos que a Igreja que formamos tem de converter-se ao amor de Jesus Cristo, que nada reservou para Si, mas se deu na totalidade. Cada um de nós, vive ainda centrado em si mesmo, com medo de perder a vida, por não acreditar que esse é o caminho para salvá-la.

Apesar da identidade cristã que assumimos, falta-nos a ousadia do serviço e do amor até ao fim, tal como foi vivido pelo Senhor Jesus Cristo e nos foi deixado como exemplo. A celebração da Eucaristia, memorial da sua oferta por nós ao Pai, tem ainda pouco a ver com a nossa vida, com o mundo das nossas relações com os outros, com os valores que encarnamos, com a família de que somos membros, com o modo como assumimos a construção da sociedade a todos os níveis.

À luz da fé, assumimos a Eucaristia como sacramento da caridade de Cristo, mas pouco como o sacramento da nossa caridade; admiramos o gesto de Jesus que lava os pés aos seus discípulos, mas não damos o passo no sentido de nos vergarmos diante dos outros no serviço livre e desinteressado, que os eleva à mais alta dignidade e nos eleva também a nós.

“Como agradecerei ao Senhor tudo quanto Ele me deu?” Neste dia de Quinta- feira Santa, comprometamo-nos a “oferecer ao Senhor um sacrifício de louvor”, ou seja, a oferecer o cálice da nossa vida juntamente com o cálice da Sua vida, comprometamo-nos a unir o nosso amor ao seu amor.

A Eucaristia que aqui celebramos em sua memória, juntamente com a oferta da totalidade da nossa vida, constituirão a única ação de graças deste dia e de todos os dias.

Elevemos, por isso, o cálice da salvação e invoquemos o nome do Senhor.

Coimbra, Sé Nova, 5 de abril de 2012

Virgílio do Nascimento Antunes

Bispo de Coimbra

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