Homilia do bispo de Beja no Dia de Natal

Iluminados pela glória de Cristo

1 – A solenidade do Natal marca, liturgicamente, o início do Novo Testamento. Como sabeis, no Antigo Testamento, o texto bíblico mais rezado e usado é o Escuta Israel. Escutar é fundamental para que haja fé e esperança. Escutar cria em nós um dinamismo que nos põe a caminho. No Novo Testamento, como ensina São Paulo, a fé cristã nasce também de escutar. Mas aí vemos aparecer, com grande força, o verbo ver. Aquele Menino nascido em Belém, contemplado pelos pastores e pelos magos, é verdadeiramente Deus feito homem. Quem O escuta, a Deus escuta; quem O vê, vê Deus.

Ver Deus? A Deus ninguém O viu, ouvimos há momentos na leitura do Evangelho de São João. E, no entanto, no quarto Evangelho, ver é sinónimo de acreditar.

Que significa para nós hoje, ver a  glória de Deus? Que significou para o povo de Israel, no tempo do profeta Isaías, esta expressão fortíssima da primeira leitura as sentinelas veem com seus próprios olhos a Deus que regressa para Sião? Se é verdade que ninguém pode ver Deus, como é que alguém pôde escrever estas palavras?

2 – Queridos irmãos: ouvimos no Evangelho proclamado há momentos: O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória. Nestas palavras do prólogo do Evangelho de São João se condensa a revelação da identidade de Jesus. Ele, a palavra do Pai, fez-Se homem e veio ao mundo, para nos salvar das trevas da morte e do pecado, e nos revelar a Sua glória.

Mas o que significa a palavra glória? Que significa hoje para nós a visão da glória do Senhor Jesus Cristo? Há duas palavras que expressam o significado de glória. A primeira é esplendor, beleza. A segunda tem a ver com peso, importância, poder. Assim quando dizemos: O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória, proclamamos a experiência que temos da importância, do peso, e também da maravilhosa beleza que é vivermos com Deus feito homem, com Deus que armou a Sua tenda no meio de nós. Pela fé, nós vemos a Sua glória, a glória do Filho, cheio de Graça e de  Verdade. Pela fé, nós reconhecemos que Jesus de Nazaré é a Palavra do Pai, o Filho de Deus, por meio do Qual criou o Universo, e a Quem constituiu Herdeiro de todas as coisas. Como afirmou de Si mesmo, nós acreditamos que Ele é a Luz do mundo, Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Deixemo-nos seduzir por Ele, pelo esplendor da sua beleza. A fé em Jesus tem a ver com o deslumbramento, com o entusiasmo. Deixemo-nos também subjugar pelo seu peso, pela sua importância, pois todo o poder Lhe foi dado no Céu e na terra, e o nosso auxílio vem do Senhor. Só do Senhor.

3 – Ouvíamos na segunda leitura, da carta aos Hebreus, que Jesus é o resplendor da glória do Pai e a imagem da Sua substância. A revelação essencial do Novo Testamento é a ligação entre a glória de Deus e a pessoa de Jesus. Aquele Menino nascido em Belém, numa gruta, por não ter lugar na estalagem, aquele Pregador tantas vezes desprezado por dizer a Verdade, Aquele Homem que morre crucificado no Calvário carregando com os pecados do mundo, é o mesmo que alguns discípulos viram glorioso no monte Tabor e contemplaram ressuscitado e subindo ao Céu cheio de glória.

N’Ele se manifestou para nós a glória do Pai, a Sua essência e a Sua maneira de agir. Quem O vê, vê o Pai, quem acredita n’Ele é no Pai que acredita. Quem O segue, porque n’Ele vê o Bom Pastor, é ao Pai que está seguindo. E quem O ama, é ao próprio Pai que está amando, porque os dois são um só. Nós contemplamos a sua glória sobretudo quando O vemos levantado na cruz, sofrendo inocente e morrendo por nós pecadores. É d’Ele, a Quem nos unimos pela Profissão de Fé no Batismo, que recebemos a honra e a glória de sermos raça eleita, nação santa, participantes do Seu Sacerdócio Real e povo de Sua particular propriedade.

A consciência da glória de Cristo, que nos é revelada pelo Espírito Santo, cria em nós cristãos o sentimento da dignidade e da honra próprias da nossa condição de filhos adotivos de Deus. Somos cristãos, fomos libertados da escravidão do pecado, para sermos o louvor da Sua glória, o louvor da glória do Senhor.

4 – A oração cristã, este virmos à presença de Deus, deve provocar em nós a admiração, o entusiasmo e a gratidão próprios de quem, embora se reconheça indigno, tem a certeza de ser amado pelo Senhor, por se relacionar com a Sua Santidade e a Sua Glória. E se é autêntica a nossa oração, ela dará forma a todos os nossos comportamentos. Aquele Amen com que se conclui, na Oração Eucarística, a oferta de toda a honra e toda a glória e o oferecimento de nós mesmos ao Pai, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo, devemos traduzi-lo no nosso agir, no fazermos a vontade de Deus, em cada dia. Quem é cristão, não faz a sua vontade mas a vontade de Deus; e porque espera ser glorificado com Cristo, une-se a Ele e não busca a própria glória.

Vivamos, queridos irmãos, iluminados pela glória de Cristo que nos dignifica. A mentalidade desta sociedade materialista torna-nos muito sensíveis à quantidade e à qualidade dos bens que consumimos, e muito menos à qualidade dos relacionamentos que temos uns com os outros, com as coisas e com Deus. Parece que cada um defende a sua dignidade lutando contra os outros que vê, tantas vezes, mais como inimigos do que como irmãos. E como os bens materiais se compram com dinheiro e o dinheiro se ganha trabalhando, muitos renunciam, caladamente, a relacionar-se com Deus. Para Jesus, que nos revela o Pai e nos dá a conhecer a nós próprios a nossa identidade, continua a não haver lugar na hospedaria.

5 – Contemplemos, queridos irmãos, Jesus nascido no presépio, por nosso amor, pedindo-nos lugar para habitar connosco, para fazer chegar até nós a Sua salvação. Na medida em que O recebemos, juntamos o nosso pequeno espaço aos muitos espaços que, por toda a terra, os cristãos Lhe oferecem. E com os olhos iluminados pela fé, vejamos para além do que se pode ver naturalmente. Contemplemo-l’O presente em cada irmão, também e sobretudo naqueles cujos sofrimentos nos incomodam. Como diremos daqui a momentos, no prefácio da Missa, Ele nos conceda que contemplando a Deus visível aos nossos olhos, sejamos arrebatados no amor do que é invisível.

Sejamos arrebatados no amor do que é invisível.

No amor do que é invisível, mas que, pela fé, pela esperança e pela caridade, se vai tornando visível para os olhos daqueles que acreditam.

Sé de Beja, 25 de dezembro de 2020

D. João Marcos, bispo de Beja

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