Homilia do bispo de Angra na celebração da Ceia do Senhor

Assim como eu fiz, fazei vós também!

Jesus está prestes a deixar os seus e o mundo. Prepara o seu testamento de vida com as últimas palavras e alguns gestos. Num misto de nostalgia e angústia, ele opera a passagem da páscoa judaica à Nova Páscoa, funda a Eucaristia e confia-a aos seus sacerdotes e coloca a caridade como seu seu testamento. Mas Ele quer, sobretudo, confiar a memória de si mesmo e deixar uma mensagem para os tempos futuros. A quem e como? Aos seus amigos mais próximos e com dois gestos singulares: a Fração do Pão ou a Ceia do Senhor e o Lava-pés. «Fazei isto em memória de mim» dirá Ele. Estes gestos vão torná-lo verdadeiramente presente entre os seus, ali e no futuro, sempre que se reunam em seu nome. São gestos que nos contam o que Ele é e será para o mundo, que falam do seu e nosso Deus e nosso Pai. Dois gestos que resumem a Sua Vida e todo o evangelho.

Jesus tinha chamado aqueles amigos três anos antes, “tinha-lhes ensinado” a Boa Nova que é o seu Evangelho e feito deles a sua família. Antes da Sua Paixão, reúne essa mesma família para celebrar a anual Ceia Judaica. Esta será única e diferente, cheia de emoção e do peso da despedida: «Ansiei ardentemente comer convosco esta Páscoa antes da minha paixão» (Lc 22, 14-15). Durante a Ceia explicou: “Tenho o desejo de tomar este pão nas minhas mãos, de dar graças ao Pai porque ele é a minha e vossa Vida, vou parti-lo e distribuí-lo por vós para que o tomeis e comais. Mas este pão é o meu corpo oferecido por vós, fazei sempre isto em memória de mim”. E fez o mesmo com um cálice de vinho, seu sangue, sua vida, apontando ao Calvário, onde em vez de vinho será todo Ele sangue derramado por eles e por nós. E neste gesto de partir o pão, os seus, nós e o mundo, vamos reconhecê-Lo pelo que ele é: um Tu que nunca destruiu ninguém, que nunca derramou o sangue de ninguém, que nunca devorou ninguém, mas que, pelo contrário, em conformidade com a vontade do Pai (cfr. Mc 14, 36) e livremente (cf. 10, 17-18), se entregou àqueles que injustamente o «partiam», o faziam sangrar e o brutalizavam. Ele era movido unicamente pela intenção de revelar que ao mal se pode responder com o bem, ao erro com o perdão e ao ódio com um amor louco e escandaloso, convertendo as feridas infligidas numa brecha da qual flui, poderosa, a energia de uma benevolência que envolve aqueles que ofendem, na esperança de humanizar-suavizar a sua escuridão interior.

A Eucaristia continuará a ser atualização deste gesto criador e memória da Sua paixão, Morte e Ressurreição. Somos todos incapazes de entender plenamente este “grande Mistério da Fé”, mas continuaremos amados incondicionalmente e chamados a tornarmo-nos a extensão do seu amor eucarístico, pedaços de pão que se parte para saciar a todos, sem exclusão, como ele fez.

O Evangelista João narra tudo isto no lava-pés (cfr. Jo 13, 1-20). É um gesto feito conscientemente e que nasce de um amor que atinge aqui a sua plenitude: «Tendo amado os seus, amou-os até ao fim» (Jo 13, 1). Colocou à cintura o seu avental e lavou os pés aos discípulos, um gesto próprio do escravo (cf. 1 Sm 25, 41). É bom recordar que a única veste litúrgica que Jesus usa em todo o Evangelho é o seu humilde avental. Que solenidade naquele avental! Que missa, que Eucaristia, aquela que celebramos quando vestimos os aventais e lavamos os pés uns dos outros, e nos entregamos aos outros. «Cada vez que fizerdes isto, fazei-o em memória de mim». Não há alegria mais bela do que fazer algo bom pelos outros.

No lava-pés há uma visão de Jesus e do Pai difícil de compreender por Pedro (cf. Jo 13, 6-9) e pelo homem, mas Jesus envolve-os sem meias medidas: «Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que também vós façais como eu vos fiz» (Jo 13, 14-15). A verdadeira glória não está em colocar os outros debaixo dos nossos pés, mas em curvar-se diante do outro ao serviço da sua necessidade e da sua alegria. A verdadeira glória não está em tirar a vida do outro, mas em compreender-se como vida para o outro, seja ele quem for. Passa o testemunho aos apóstolos que precisarão do Espírito Santo, depois da Ressurreição, para entenderem tudo o que lhes ensinou.

Precisamos de voltar a ser estas famílias reunidas à volta da mesa com Jesus, já em cada casa, e que, porque abertas aos irmãos, se reúnem na casa da Igreja onde circula a força do Mandamento Novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Chega a ser deprimente ver como muitas famílias, devido ao ensino incompleto que fomos fazendo nas paróquias e que já não serve hoje, se esforçam apenas por “levar os filhos à primeira comunhão”, como a um rito isolado ou um prémio que se recebe por ter “ido à catequese”, em vez de se questionarem, antes de tudo, sobre a qualidade da vida cristã vivida entre todos na família e centrada em Cristo. É redutor fazer a primeira comunhão sem uma habitual presença na Eucaristia. Haverá um dia, em que os pais, melhor que os catequistas, perceberão que o filho ou filha já conhece e ama Jesus, já fala com Ele na oração, já há uma paixão entre os dois e já sabe amar o próximo. Dirão então que é tempo de iniciar a participação plena na Eucaristia, começando a comungar o Corpo de Cristo. Ouve-se por vezes irrefletidamente aos mais novos: “fui tomar a hóstia…”. Até arrepia, só de ouvir! A hóstia é Cristo! Será que a nossa fé chega até Ele, ou fica só no pão?

Sejamos gratos a Deus pelo dom da Eucaristia e de todos os padres da nossa diocese, gerados também neste Dia santo da Ceia do senhor e que nos garantem a continuação deste Memorial celebrando os sacramentos. Eles nascem do coração amoroso de Jesus para que, com as suas mãos ungidas no dia da Ordenação sejam sinal da Sua presença e do Seu amor. Que também eles vivam como homens eucarísticos e grandes lavadores de pés. Rezai todos os dias para que, à volta deles e da Eucaristia, nasçam autênticas e fraternas comunidades.

Alimentemo-nos do Amor deste dia para nos tornarmos amor, deixemo-nos lavar os pés para nos tornarmos mensageiros das boas novas a todos os irmãos (Is 52, 7).

Amaremos como fomos amados! A medida de Jesus é alta… Oxalá, com o caminho que fazemos juntos em Igreja, consigamos amar sempre como Ele fez (Jo 13, 34).

+ Armando, Bispo de Angra

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