Homilia do bispo da Guarda na Paixão do Senhor

Foto Jornal a Guarda

«Assim se cumpriam as palavras que Ele tinha dito: “daqueles que Me deste não perdi nenhum”.»

Logo no início do relato da Paixão por São João, esta pode ser uma chave de leitura para o mistério que estamos a celebrar e adorar: Jesus entrega-se à Paixão e à morte para que nenhum se perca; nem um homem ou mulher fiquem sem acesso à salvação, à vida em Deus.

Se Jesus claramente assume esta realização, então é porque o risco de que alguém se perdesse era real. Jesus tinha-o dito na sua oração sacerdotal, por isso sabemos que não se estava a referir apenas ao risco de os seus sofrerem a mesma tortura e morte que Ele ia sofrer. Referia-se ao risco da perdição.

Jesus não quer que ninguém se perca. Mas então, porque é que alguém se pode perder? Os textos que escutámos indicam algumas possibilidades. Vejamos, pois, algumas delas:

1º.        A procura a todo o custo em levar por diante uma visão de sociedade e de bem que se foi construindo ao longo da vida, mesmo desrespeitando as fronteiras do razoável e até do respeito pela dignidade do outro. Judas recorre à força de soldados e aproveita-se do conhecimento íntimo dos hábitos de reunião de Jesus para Lhe impor o seu projecto de reino messiânico. A imposição a Deus das nossas visões de Bem, de Reino, de Salvação, de Messias, é caminho que nos perde. No limite, chegamos a construir um Jesus ou um Deus à nossa maneira e adoramos uma falsa divindade que acaba por nos cegar. É preciso curar essa cegueira. É preciso abrir outro caminho.

2º.        A preferência pela auto-preservação quando a vontade de Deus pede a entrega pelo outro. Jesus repreende o gesto violento de Pedro e cura a orelha de Malco, indicando claramente o caminho: «Mete a tua espada na bainha. Não hei-de beber o cálice que meu Pai me deu?» A iniciativa violenta é caminho contrário à vontade de Deus, é caminho que nos perde. Condena-nos à espiral de violência e ao horizonte de autogarantia que sempre, mais cedo ou mais tarde, se mostrará incapaz e infrutífero. Pelo caminho, deixa um rasto de feridas e mortes. É preciso quebrar essa espiral. É preciso abrir outro caminho.

3º.        A pretensão de ser dono da vida de outros e de exercer autoridade quanto ao término da vida de alguém, decidindo quais as vidas que devem ser defendidas e quais as que podem ser eliminadas. Às vezes até reduzindo alguém a motivo conveniente para servir determinada causa, como defendia Caifás: «convém que morra um só homem pelo povo». Sejam as causas de então, sejam as causas de hoje. A instrumentalização da pessoa despojando-a da sua dignidade inviolável e sagrada é caminho que nos perde. Aprisiona-nos numa visão utilitarista e alimenta uma cultura de exploração, de abuso e de descarte. É preciso quebrar essa cadeia. É preciso abrir outro caminho.

4º.        A ilusão de que a verdade é uma construção circunstancial, relativa, produto sociocultural transitório, sem qualquer dimensão transcendente que nos convoque a uma procura humilde. A ponto de, mesmo quando Jesus se apresenta como Aquele que nasceu e veio ao mundo «a fim de dar testemunho da verdade», Pilatos apenas consegue duvidar de que seja possível pensar a verdade; e acaba por ficar refém das circunstâncias e condenar Jesus, mesmo convicto da sua inocência. A subjectivização absoluta da verdade é caminho que nos perde. Enreda-nos na incerteza que se encolhe diante das pretensas verdades do momento. É preciso tornar-se peregrino da Verdade. É preciso abrir outro caminho.

5º.        A angústia provocada pelo sofrimento que conduz ao desespero e à ilusão de que é possível um mundo alternativo sem a finitude e a contradição do mal. Que chega a pôr em causa a existência de Deus: como se para Deus existir fosse necessário que aqueles que amamos não adoecessem gravemente nem morressem, que os mais novos não estivessem sujeitos a acidentes e doenças mortais, que ninguém sofresse como consequência de causas naturais ou do mal praticado por pessoas e sociedades. A ideia menos amadurecida, às vezes mágica, acerca de Deus é caminho que nos perde. Rouba-nos a esperança que nasce da certeza de que o Senhor é bom, o Senhor está próximo e sempre abre um caminho de saída e salvação sem nos alienar da realidade. É preciso abrir-se humildemente aos modos de presença e actuação de Deus. É preciso experimentar como a fidelidade obediente [mesmo] no sofrimento é a nossa justificação. É preciso abrir outro caminho.

Mas se estas são possibilidades de perdição, como é que Jesus nos salva?

Em primeiro lugar, Jesus abraça-nos na nossa condição e situações. Jesus irmana-se connosco, não só para ser nosso companheiro, mas para suportar as nossas enfermidades e tomar sobre Si as nossa dores; para fazer cair sobre Si o peso que nos condenava e tornar-nos possível caminhar adiante. Ele tomou sobre Si as culpas das multidões e intercedeu pelos pecadores. Ao contrário do que muitos hoje pensam, adorar o Crucificado não é impor um peso de culpa sobre ninguém, mas apontar uma relação que nos ensina a ser libertados das culpas sem ter de se subjugar a elas, nem negá-las, fugir-lhes ou fingir que não existem.

Em segundo lugar, Jesus inaugura uma possibilidade nova: oferece relação, não aos impecáveis mas aos redimidos, não aos imaculados mas aos perdoados. A Cruz de Jesus é o caminho por onde vamos confiantes ao trono da Graça a fim de alcançarmos misericórdia. Por isso a adoramos. Nós não somos masoquistas: não adoramos uma cruz qualquer. As cruzes sem Cristo esmagam, ferem, são abomináveis. Nós apenas adoramos a Cruz redentora, aquela onde o Amor sem limites nem desistência abre relação nova onde já ninguém acreditava ser possível fazê-lo.

Em terceiro lugar, Jesus (que como escutámos na celebração da manhã de ontem se apresentava ungido pelo Espírito) entrega o seu Espírito nas mãos do Pai depois de ter entregado aos discípulos a sua Mãe. Trespassado pela lança do soldado, jorra do seu lado sangue e água, fonte dos sacramentos dos quais nasceu a Igreja nossa Mãe. Deste modo, na sua Paixão Jesus inaugura o processo de nascimento da Igreja, que se completará no Pentecostes com a descida do Espírito para a missão. Na Igreja, Ele permanece como fundamento, cabeça e presença. A Igreja não é uma mera associação dos amigos de Jesus. É antes o lugar e o instrumento escolhido para que o Espírito estenda no tempo e no espaço, a todos, a salvação.

Daqui a momentos, vai-nos ser trazida a Cruz de Jesus para que a adoremos. Depois desta celebração, ela permanecerá exposta diante de nós até à Vigília Pascal na noite de amanhã, recebendo os mesmos gestos de veneração que durante todo o ano dirigimos à presença eucarística do Senhor, depositada no sacrário.

Ao realizar os gestos de adoração, não privatizemos esse momento. Façamo-lo com unção e devoção. Mas façamo-lo como Igreja, o «sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (LG 1). Renovemos a nossa adesão a Jesus e, diante da prova maior do seu amor por nós, ofereçamo-nos a Ele como instrumentos escolhidos para estender à nossa volta os frutos da Paixão de Cristo. E unamo-nos a todos, e especialmente aos que sofrem, esses em quem Jesus continua a ser rejeitado e crucificado.

Tenho presentes todas as vítimas da prepotência e da injustiça, da fome e da guerra, das tiranias e da exploração, das desigualdades de oportunidades e das ideologias sem humanismo, das violações dos direitos humanos e das perseguições religiosas. Nesta Sexta-feira Santa, trago ao coração de forma ainda mais viva todos os que sofrem os efeitos do terrorismo e da guerra na Terra onde Jesus viveu toda a sua vida e os acontecimentos da Paixão. E também as comunidades cristãs da Terra Santa que a muito custo mantêm aí presente a Igreja de Jesus e cuidam dos Lugares Santos. Na oferta que daqui a pouco recolheremos em seu favor, esse gesto de partilha possa ser expressão da nossa adoração e gratidão para com o mistério da Cruz do Senhor.

 

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