Homilia do Arcebispo de Braga na Sexta-feira Santa

O silêncio da morte exige uma palavra viva

A Igreja celebra a Paixão e a morte de Jesus Cristo. Experimenta-se o dramatismo do sofrimento e a angústia da morte. Contudo, ancorados na inteligência da fé, não aceitamos estagnar neste momento crucial da história da humanidade. A morte de Cristo é preâmbulo de uma nova vida a acolher e a fazer com que outros a acolham.

Sabemos que Jesus morreu como parte integrante do Mistério pascal e, por isso mesmo, lançamos o nosso olhar na Ressurreição, apesar de muitos quererem aprisionar Deus no aguilhão da morte. É, então, sobre esta morte de Deus que nos concentramos. Deus sempre teve os Seus inimigos, que reclamavam a Sua não existência ou combatiam aqueles e aquelas que acreditavam n’Ele como o vivente. Hoje, o cenário é diferente. As diversas forças parecem conjugar energias para O afastar, provocando a morte ou vivendo como se Ele não existisse. Não podemos ter ilusões.

Vivemos a Quaresma na lógica da justiça, que dá a cada um o que é “seu”. Reconhecemos, porém, que o Homem moderno pode necessitar de muitas coisas mas, “mais do que pão, ele, de facto, precisa de Deus”. É que, prescindindo de Deus, o ser humano esvazia-se; negando os valores saudáveis, perde-se numa encruzilhada desconhecida e com um futuro carregado de perplexidades.

Muitos acreditam na ilusão emotiva do presente. Só que tudo desaparece, e as mãos cheias de nada estão a gerar imensos conflitos entre grupos partidários que deveriam orientar-se, na diversidade de soluções, para a prossecução do bem comum. Coabitamos com escandalosas atitudes de desrespeito e aproveitamento dos bens alheios, com inseguranças misturadas com gestos de corrupção e oportunismos, numa total desconsideração pelas normas mínimas de uma convivência sadia. Deparamo-nos com uma educação que não forma para valores, antes reduz-se à avidez de conhecimentos desintegrados de um autêntico projecto de humanismo, com ataques a instituições estruturantes da sociedade, como é a família, através de propostas de alternativas enganadoras.

São tudo sinais de uma desorientação generalizada que o hedonismo impôs e o egoísmo exacerbado justificou. Muitos poderão pensar que estes sinais de autêntica morte são fortuitos. Nada mais enganador. A sociedade não quis dar ao Homem o que lhe pertencia de mais íntimo – Deus – e está a perder-se numa desorientação que atemoriza. Quando o Papa nos recordava o autêntico sentido da justiça em S. Agostinho, estava a colocar o dedo na ferida. Ele afirmava: “a justiça é a virtude que distribui a cada um o que é seu… não é justiça do homem aquela que subtrai o homem ao verdadeiro Deus” (De civitate Dei, XIX, 21).

Perante a celebração da morte de Jesus, interroguemo-nos e levemos para os nossos ambientes esta pergunta crucial. O que é que os governos estão a “distribuir” aos cidadãos? São premissas de vida autêntica ou sementes de morte a acontecer mais tarde ou mais cedo? E para quem deseja dar uma resposta a tantos males, não será que a causa destas realidades, que todos condenam, reside na orquestração bem delineada de subtrair Deus ao concreto das pessoas e às coordenadas de uma sociedade armadilhada por tantos estrategas da destruição?

Perante a cruz de Jesus, reconhecemos que Cristo pagou por nós um preço verdadeiramente exorbitante. Não foi com palavras ou discursos oportunistas mas com o Seu sangue. Como crentes, não podemos alhear-nos a esta entrega. Importa, portanto, que nos convertamos e acreditemos no Evangelho, reconhecendo que “precisamos de um Outro” para sermos verdadeiramente nós mesmos, que necessitamos “de sair da ilusão da auto-suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência – indigência dos outros e de Deus”. A morte de Cristo está a pedir-nos isto.

A cruz de Cristo recorda-nos, ainda, aquilo que o Papa Bento XVI reflectia na Caritas in Veritate. “Além do crescimento material, o desenvolvimento deve incluir o espiritual, porque a pessoa humana é “um ser uno, composto de corpo e alma”, nascido do amor criador de Deus e destinado a viver eternamente. O ser humano desenvolve-se quando cresce no espírito, quando a sua alma se conhece a si mesma e apreende as verdades que Deus nela imprimiu em gérmen, quando dialoga com o seu Criador. Longe de Deus, o Homem vive inquieto, infeliz.

As alienações sociais, psicológicas e as inúmeras neuroses que caracterizam as sociedades opulentas devem-se também a causas de ordem espiritual. Uma sociedade do bem-estar, materialmente desenvolvida mas opressora para a alma, não está, por si mesma, orientada para o autêntico desenvolvimento. As novas formas de escravidão da droga e o desemprego em que caem tantas pessoas têm uma explicação não só sociológica e psicológica, mas especialmente espiritual. O vazio em que a alma se sente abandonada, embora no meio de tantas terapias para o corpo e para a mente, gera sofrimento. “Não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e corpo.” (CV 76)

O quanto é desafiante para os nossos contemporâneos “ver o que nunca lhes tinham contado e observar o que nunca tinham ouvido” (Is 52, 16). E nós, cristãos, estamos em condições de proporcionar esta experiência desde que sejamos capazes, nós próprios, de ver. “Aquele que viu é que dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que diz a verdade, para que também vós digais” (Jo 19, 42).

O silêncio contemplativo da morte de Cristo é oportunidade para renovar o empenho de acolher em autenticidade a Sua Palavra e, através da autenticidade da vida, a colocarmos no coração da história dos nossos contemporâneos e conterrâneos. Ela, no momento oportuno, florescerá como modelo e paradigma de uma sociedade nova.

Braga, 02 de Abril de 2010,

Sexta-feira Santa,

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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