Homilia do arcebispo de Braga na celebração da Paixão do Senhor

O curriculum de Cristo 

Há dias, enquanto viajava no carro, na Rádio Renascença passava uma célebre música de uma cantora norte-americana, cujo refrão dizia: “Nós não precisamos de um outro herói!” (“We don’t need another heroe”). Por isso, emerge a pergunta: quem é afinal o nosso verdadeiro herói?

Neste sentido, permiti que vos conte agora uma história verídica. Era uma vez um homem que nasceu de uma mulher virgem, numa estalagem longe da sua terra natal. Cresceu numa pequena aldeia e trabalhou até aos 30 anos com o seu Pai. Depois saiu de casa e foi batizado por um primo seu, num rio que passava lá perto. Mais tarde, convidou 12 amigos para o seguirem durante 3 anos.

Ao longo desses 3 anos, perdoou os pecadores, foi ao encontro das mulheres e dos pobres que eram excluídos pela sociedade; chorou a morte dos amigos; resistiu às tentações do demónio; não teve medo de ficar na casa dos corruptos; confrontou os intelectuais da época; defendeu os valores da justiça e do amor; curou os cegos, os mudos, os paralíticos e os leprosos; exorcizou os possessos; realizou inúmeros milagres; multiplicou pães e peixes; até conseguiu caminhar sobre as águas do mar; e fez sonhar aquela multidão que O seguia com os sonhos mais fascinantes que um ser humano pode desejar.

O sonho de um mundo justo, numa época banhada na corrupção e imoralidade; o sonho da liberdade, numa época de opressão política; o sonho da felicidade, numa época de extrema assimetria e pobreza social; e o sonho da eternidade, numa época onde a morte era o atestado mais visível da falência da Medicina e o maior dos pesadelos do Homem.

Posto isto, perguntam: mas quem é afinal este homem? Será um profeta, um revolucionário, um fundamentalista, um mágico, um político, um fascista, um ditador, um sindicalista, um herói popular ou um louco?

Todos sabemos responder: era o mensageiro de Deus. Um mensageiro que, ao contrário das outras religiões, não era um anjo, um espírito, uma voz ou uma força energética, mas um homem com uma história, uma descendência, uma nacionalidade, uma família e um nome concreto: Jesus, o Cristo.

Como tal, após esses três anos de pregação foi julgado em público, despojado das suas vestes, coroado de espinhos, insultado, escarnecido, cuspido, espancado, esbofeteado, chicoteado, humilhado, flagelado e crucificado… tudo isto por desafiar o paradigma social e religioso da época, tal como fora profetizado por Isaías na primeira leitura.

Por tudo, obrigado Jesus! Obrigado, por teres morrido por nós nessa cruz! Nessa cruz que na altura foi um escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios; nessa cruz que é a consequência lógica do anúncio da radicalidade do Reino de Deus; nessa cruz onde Tu provaste que Deus nos ama verdadeiramente até aos limites do sofrimento humano; nessa cruz onde Tu provaste que realmente há uma vida depois da morte; e nessa cruz que ainda hoje nos choca, nos mete medo, nos comove, nos arrepia e nos faz chorar!

Acontece, porém, que nós, os cristãos, muitas vezes quando estamos em casa, no café, na escola, no emprego ou no shopping, duvidamos desta salvação de Jesus e perguntamo-nos: Jesus, se tu és realmente o nosso herói e o nosso Salvador, e se tu continuas presente no meio de nós, tal como tu próprio o afirmaste, então porque é que tu permites que, nos dias de hoje, continue a haver tantas injustiças, tantas angústias e tanto sofrimento?

Se tu és o salvador do mundo, então onde é que Tu estavas: quando esta crise económica mundial veio abalar as nossas vidas? Quando aqueles gestores públicos roubaram milhões de euros ao Estado, esse dinheiro pago pelo suor dos nossos impostos? Quando a corrupção invadiu os meandros de negócios marcados pelo aproveitamento dos mais frágeis? Quando os gestores da causa pública desconsideram os mais pobres e abandonados em vez de motivarem as suas ações pelas exigências de bem comum? Quando tantos idosos já não têm dinheiro para pagar os medicamentos? Quando aquelas 60 000 crianças foram assassinadas no nosso país, nos últimos anos, mediante o método de aborto?

Se tu és o salvador do mundo, então onde é que Tu estavas: quando a violência doméstica continua a matar tantas mulheres? Quando tantos filhos sofrem, cada vez mais, autênticos traumas psicológicos por causa do divórcio dos pais? E quando tantos estudantes, passam horas a fio a estudar, e não conseguem um emprego que lhes garanta o futuro?

Se tu és o salvador do mundo, então onde é que Tu estavas: quando um dos nossos familiares foi atingido por uma doença grave? Quando aqueles comerciantes foram assassinados num assalto violento? E quando os nossos amigos perderam o emprego?

Irmãos e irmãs, são estas perguntas que tantas vezes nos perturbam e fazem com que muitos coloquem em questão a existência de Deus. Mas a verdade é outra. Aquando de uma visita a um campo de concentração

da II Guerra Mundial em Auschwitz no ano de 2006, o Papa Bento XVI perguntava: «Senhor, porque Te silenciaste? Por que toleraste tudo isto? (…) Todavia, este silêncio torna-se depois num grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.»

Na verdade, o grito de Cristo, que o cantor repetiu no Salmo Responsorial, não se trata de um grito de derrota, mas de vitória! Vitória da vida sobre a morte, da fé sobre a dúvida, da hospitalidade sobre a indiferença, da justiça sobre a injustiça, da esperança sobre o medo (1), da responsabilidade fraternal sobre tantos silêncios dos cristãos, do amor assumido para uma sociedade mais justa sobre o jogo de interesses pessoais ou partidários. O Amor vencerá sempre.

Mas, mais ainda, é do silêncio, que se sucede a esse grito, que nasce uma nova família: a Igreja. Uma Igreja que este ano desafiei a alimentar-se da Palavra de Deus. Sem dúvida que o silêncio é a condição sine qua non para se acolher a Palavra, pois só esta nos pode dar resposta a todas as perguntas que questionam a nossa fé (2). Mas uma Palavra que grita no testemunho e incomoda quem a pretende abafar.

Se Cristo é o salvador do mundo isto acontece através da Igreja como seu sacramento. O grito da morte de Cristo deve acordar a Igreja para que seja capaz de colocar o óleo da consolação nas feridas da humanidade e apaixonar-se, comprometendo-se, com as causas das populações. Ela não existe só para o culto. O amor a Deus é lutar pela dignidade de todos os homens e, particularmente, pelos mais débeis e fragilizados. Aí deve colocar-se com todas as suas energias e deixar qualquer tentação de poder.

Para terminar, a escritora Sophia de Mello Breyner, no livro Conto Exemplares, termina o conto sobre o “Homem” dizendo:

“Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas nossas ruas.”

Portanto, como Igreja que se alimenta da Palavra, urge agora continuar a divulgar o curriculum de Cristo, que ela nos dá a conhecer. Na certeza de que Ele continua ao nosso lado, não só na alegria, mas também no sofrimento, resta-nos apenas uma certeza: a certeza de que, à semelhança da letra do refrão daquela música, “nós não precisamos de um outro herói!”.

Catedral de Braga, 6 de abril de 2012

D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga

 

NOTAS:

1 Consequências éticas da Ressurreição de Cristo, cf. Jürgen Moltmann, El Camino de JesuCristo, 356-367.

2 cf. Bento XVI, Verbum Domini, 25.

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