1. Nas suas Memórias, a irmã Lúcia confessa as dúvidas que a assaltaram ao longo do mês de julho, quando, por influências, sobretudo de familiares, hesitou acerca da verdade das aparições.
Afirma ela: “No decurso deste mês, perdi o entusiasmo pela prática do sacrifício e da mortificação, e titubeava se acabaria por dizer que tinha mentido, e assim acabar com tudo. […] Aproximava-se o dia 13 de julho, e eu duvidava se lá iria” (I, 70).
“No dia seguinte, continua a Ir. Lúcia, ao aproximar-se a hora em que devia partir, senti-me, de repente, impelida a ir, por uma força estranha, a que não me era fácil resistir. Pus-me, então, a caminho […]. O povo esperava-nos em massa pelos caminhos, e a custo conseguimos lá chegar. Foi este o dia em que a SS. Virgem se dignou revelar-nos o segredo. Depois, para reanimar o meu fervor, disse-me: Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei a Jesus, muitas vezes, em especial sempre que fizerdes algum sacrifício: Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria” (I, 71.72).
2. A vida cristã é sempre um caminho, no qual, não raras vezes, se entrelaçam dúvidas e certezas; momentos de força e de desânimo; instantes de fraqueza, que colocam em perigo as decisões em favor da fé, e horas heroicas, onde podemos fazer nossas as palavras de S. Paulo: “tudo posso naquele que me dá força” (Filp 4,13).
Certamente: o caminho da fé transforma-nos, converte-nos, molda e purifica os nossos pensamentos, afetos, mentalidade e comportamento (cf. PF 6). Molda, plasma a nossa existência, mas não nos retira do mundo, do barro em que o próprio Deus nos criou, da fragilidade que percebemos em cada dia, e que é marca do pecado – nosso e daquele que existe à nossa volta –, de tal forma que, não raras vezes, deixamos que à realidade da vida nova (muito maior, mais certa e segura, que a fé nos oferece, e que vem de Deus) se sobreponha o homem velho, egoísta e pecador.
Aliás, a fé, por meio da qual “o homem se entrega total e livremente nas mãos de Deus”, como recorda o Concílio (DV 5), não é uma realidade adquirida de uma vez por todas. Como afirma o Santo Padre Bento XVI, o caminho da fé jamais estará “completamente terminado nesta vida” (PF 6), pelo que importa cuidar constantemente dele, aprofundá-lo, conhecê-lo, de modo a dar aos nossos passos a fortaleza e a segurança que só podem vir de Deus, e que Ele, constantemente, nos oferece.
Sabemos que, da parte de Deus, não apenas no primeiro passo mas sempre, surge a iniciativa de vir ao nosso encontro, de coração aberto e franco, para nos acolher. Da parte de Deus, não é nunca colocada em causa a vontade de nos “convidar e admitir à comunhão consigo” (DV 2).
As hesitações, as dúvidas, e o próprio pecado, que encontram a sua origem no coração de cada um de nós, não constituem sequer para Deus, que nos conhece, uma surpresa completa, ainda que (como mostram tantos testemunhos, e em particular como o mostrou Nossa Senhora, aqui em Fátima) Ele não deixe de sofrer, no seu coração, com o abandono, a ofensa, a suspeita de tantos dos seus filhos. Contudo, como reconheceu Santo Agostinho, Deus não desiste – não desiste da humanidade e não desiste de cada um de nós; pelo contrário: chama, grita, procura vencer a nossa surdez (cf. Conf. XXVII).
3. Como poderemos nós responder, corresponder, a essa iniciativa divina, que de tantas formas nos procura? O mesmo é dizer: qual é o caminho que podemos e devemos percorrer? Tê-lo-á Deus deixado à mercê, à fantasia, ao pensar de cada um?
Ao inaugurar a II Sessão do Concílio Vaticano II, dizia o Santo Padre Paulo VI: “Nenhuma outra luz se veja sobre esta reunião que não seja Cristo, luz do mundo; nenhuma outra verdade interesse as nossas almas, que não sejam as palavras do Senhor, nosso único mestre; nenhuma outra aspiração nos guie, que não seja o desejo de Lhe sermos absolutamente fiéis; nenhuma outra confiança nos mantenha, senão aquela que, através da Sua palavra, sustenta a nossa fraqueza desoladora: Eu estou sempre convosco até à consumação dos séculos”.
E disse-o, sobretudo, o próprio Senhor Jesus, a Tomé e aos demais discípulos, como escutámos na página do Evangelho há pouco proclamada: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).
Muitos serão, eventualmente, os caminhos – interiores e exteriores – que cada um empreende no desenrolar da sua existência. E, no entanto, para que nos possam conduzir à realização plena, não podem nunca deixar de se encontrar neste único caminho que o próprio Deus nos oferece: Jesus Cristo.
Muitas serão, eventualmente, as verdades – parciais e passageiras – que descobrimos ou que vêm ao nosso encontro; mas qualquer delas será sempre aparente, se não conduzir, se não cooperar, com a única Verdade capaz de iluminar os nossos passos: Jesus Cristo.
Muitos são os modos de vida que a sociedade contemporânea nos apresenta, não raras vezes atraentes e fáceis; mas nenhum deles constitui a Vida plena, abundante e feliz: essa, apenas a poderemos encontrar no Senhor Jesus Cristo – e, não tenhamos dúvidas, em “Cristo crucificado”.
4. Por entre as dúvidas, as incertezas, inseguranças e pecados que diariamente nos cercam; por entre os medos, fraquezas e incapacidades que marcam hoje a política, a economia, a vida das sociedades e dos povos do mundo contemporâneo, o Senhor Jesus continua a mostrar-se a cada ser humano como “caminho, verdade e vida”. Como reconhecia S. Pedro, na II Leitura que escutámos, “em nenhum outro há salvação, pois não existe, debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (Act 4,12).
É pois tempo, irmãos, de acolhermos, em cada dia que passa, a firmeza daquele que é “o caminho, a verdade e a vida”: o caminho que conduz ao Pai; a verdade que ilumina os nossos passos; a vida pela qual anseia qualquer ser humano.
E é igualmente tempo, irmãos, de erguer bem alto a Cristo, luz do mundo, e de mostrar que apenas Ele pode curar, de um modo definitivo, as nossas feridas – as nossas e as do homem nosso contemporâneo, qualquer que seja o continente onde habite, o bem-estar em que vive, as perspetivas que se abram ou se encerrem ao seu futuro.
5. Também a Virgem Maria percorreu o caminho da fé. Da anunciação ao presépio; das palavras do velho Simeão, ao encontro do Menino no Templo, entre os doutores; do milagre de Caná, à presença junto à cruz, e à alegria, partilhada com os demais discípulos, do surgimento da vida nova da ressurreição e da descida do Espírito Santo. Mas percorreu-o sempre unida ao Seu Filho.
Não nos pode pois admirar que aqui em Fátima, Ela, uma vez mais, mostre aos homens e mulheres do nosso tempo o verdadeiro caminho que conduz à vida.
Peçamos-lhe que, (como outrora à Ir. Lúcia) Ela reanime o nosso fervor, e que, dissipadas as dúvidas e fortalecida a nossa fé, também nós ajudemos a dissipar os medos e incertezas, em que vivem tantos nossos contemporâneos, e a sermos, para todos, a presença de Jesus, “caminho, verdade e vida”.
Essa é, como cristãos, a nossa responsabilidade. A isso têm direito (e isso esperam de nós) os homens e mulheres do nosso tempo.
D. Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa