Homilia de D. Nuno Brás na Missa da vigília da peregrinação internacional de julho – Fátima

1. A vida de Jesus é marcada por muitas realidades: é marcada pelas longas jornadas de pregação e de peregrinação; é marcada pelos encontros com aqueles que dele se acercam, pedindo a cura para as suas enfermidades ou para os males dos mais próximos; é marcada pelo seu modo de se relacionar com as multidões e com os discípulos, com os pecadores, com os fariseus, e com aqueles que o seguiam por todo o lado. Mas nenhuma destas realidades, no entanto, é mais marcante, mais característica e determinante de todo o ser de Jesus que a sua relação com o Pai. Se queremos compreender quem é Jesus, então não podemos deixar de olhar, em primeiro lugar, para o modo como Ele se entrega completamente nas mãos do Pai.

O excerto do evangelho de S. Mateus, que acabámos de escutar, como que nos permite surpreender esse segredo de Jesus; como que nos permite entrar na sua intimidade vital com o Pai. Jesus é o Filho, e não quer ser nada mais senão isso mesmo: Aquele que tudo recebe do Pai – que, do Pai, e apenas dele, recebe os ensinamentos, a missão, todo o seu ser.

Por isso mesmo, porque vive constantemente nesta intimidade única e total, Ele é o único a conhecer o Pai. E, por isso também, apenas o Pai O conhece perfeita e completamente – um conhecimento tão íntimo e tão real, que somente o dogma trinitário (um só Deus em três Pessoas) lhe faz justiça plena.

Como outrora os discípulos, também hoje, diante de nós, escutámos o Verbo que reza ao Pai. Mas não só. Com efeito, não se tratava apenas de mostrar ou de ensinar os discípulos – aqueles que O rodeavam, e aqueles outros (nós) que haviam de acreditar depois deles: tratava-se antes de os convidar – de nos convidar a entrar nesta intimidade divina. Tratava-se (trata-se) de nos dar a participar de algo que, por natureza e pelo pecado, nos estava vedado: “ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” – o mesmo é dizer: nós, cristãos e, por meio de nós, eis que o próprio Deus deseja que o convite se estenda a todos os seres humanos, de todos os tempos e lugares.

Foi esta mesma realidade que o Concílio Vaticano II quis expressar na Constituição sobre a Divina Revelação, Dei Verbum, ao afirmar: “Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos, e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele” (DV 2). Ou, dito de outra forma: o próprio Jesus nos convida a identificarmo-nos com Ele, a viver no Seu coração. E fazendo-o, a viver, como Ele, n’Ele e por Ele, em constante união com o Pai.

 

2. Nisto consiste a fé. Nisto consiste a vida cristã. Nisto se resume toda a espiritualidade, toda a ação, todas as palavras, toda a Boa Nova evangélica: Deus ama-nos de tal modo que, em Jesus de Nazaré, nos abriu as portas da Sua intimidade e, apesar do nosso pecado, nos convida a permanecer, a perseverar nessa intimidade. Ou, dito com outras palavras, desta vez de S. João: nisto consiste o “nascer de Deus” a que todo o ser humano é chamado.

É por isso também que S. João pode afirmar o que escutávamos na II leitura: “Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé”.

Ser o “senhor do mundo” é um sonho que, de tempos a tempos, regressa às mentes de um ou outro mais poderoso. De Alexandre Magno a Estaline, de Napoleão Bonaparte a Hitler, e de tantos outros, detentores de poder ou que imaginaram sê-lo – mesmo aqueles cujos nomes ignoramos e que nunca figuraram nos livros de história: no fundo, o pecado faz com que, em cada um de nós, exista um “pequeno ditador”, que se deseja sobrepor aos demais, e que, se tivesse condições para sujeitar o mundo inteiro, não hesitaria em fazê-lo…

Mas o Senhor Jesus diz-nos que não são as armas; que não é o poder político ou tecnológico; que não é o domínio psicológico ou das riquezas materiais e, muito menos a notoriedade diante de todos, a possuírem a última palavra acerca do mundo, da história e de cada ser humano.

Os homens poderão destruir; poderão dominar por algum tempo; poderão, por alguns dias ou anos, sujeitar os demais ao seu jugo. Mas não será a sua palavra de ódio, de domínio ou de vingança, a última a ser pronunciada sobre a história e sobre cada ser humano.

A última palavra – diante da qual um coração cheio de ódio não deixará de sentir a justiça do amor – a última palavra, dizia, será sempre aquela pronunciada pelo coração de Deus. E essa será sempre uma palavra de amor – daquele Amor que, esquecendo-se de Si mesmo, não hesitou em fazer seus os nossos pecados e a própria morte, para a todos os viver e derrotar no madeiro da cruz.

 

3. No já longínquo 1917, quando se faziam escutar pelo mundo os sons da guerra e da discórdia, a mensagem de conversão que a Senhora de Fátima, aqui na Cova da Iria, nos veio trazer, outra não é senão essa. O triunfo não pertence ao homem mas a Deus, ao Seu coração amoroso. E, para isso, o próprio Deus conta connosco, tal como contou com a vida e a entrega total daquelas três pobres crianças.

Não nos pede a Senhora, a nós que aqui estamos, como outrora aos pequenos pastorinhos, que nos convertamos a coisas, a regras, a normas. Pede, tão-somente, que nos convertamos a Deus e ao Seu amor. Pede-nos que deixemos que Ele reine no nosso coração: que deixemos os nossos caminhos, para fazermos nossos os seus caminhos; que deixemos os nossos pensamentos, para os deixarmos elevar e transformar pelos seus; que deixemos os jugos que os homens nos querem impor, de um modo claro ou sub-reptício, para nos deixarmos conquistar por Ele, “manso e humilde de coração”.

Só nele e com Ele encontrará o mundo justiça e paz. Só nele e apenas nele, encontraremos o verdadeiro descanso para as nossas almas.

D. Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa 

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