Homilia de D. Manuel Linda na peregrinação de Guimarães a Fátima

Há três anos, muitos de vós, oriundos da mesma zona pastoral de Guimarães, viestes a este Santuário de Fátima para, de algum modo, vos matriculardes na «Escola de Maria» e iniciar um percurso de aproximação à Palavra de Deus, sob a sua orientação. De facto, ela é o modelo acabado de todo o crente que se abre à mensagem salvífica, a acolhe no seu coração e a faz vida. Vida que oferece ao mundo. Por isso, nesse momento determinante da história da humanidade, que foi a Anunciação, ela pôde sintetizar todo esse mistério numa simples expressão: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a sua Palavra” (Lc 1, 38). E a Palavra fez-se carne e habitou entre nós. Palavra salvadora, consoladora e redentora.

Hoje voltais ao mesmo Santuário para avaliar o caminho percorrido, confrontar o timbre de vida com esse sublime modelo da escuta e vivência da Palavra e recobrar ânimo para, como diz o nosso programa pastoral arquidiocesano, vos tornardes “vinha eleita do Senhor” (cf Is. 5,1), capaz de produzir bons frutos de salvação. Estou convosco porque, como cepa da mesma vinha e da mesma Arquidiocese, participo de igual obrigação. E mais: se vos devo animar neste processo, também recebo de vós estímulo para corresponder ao projeto do nosso Deus.

A liturgia deste Domingo que, por antecipação, já celebramos, aponta precisamente para aí. A pergunta do doutor da lei, um especialista que não interroga o Mestre movido por uma inquietação interior nem pelo desejo de procurar a verdade, mas apenas para encontrar pretexto para atacar, encontra em Jesus uma resposta séria. É que Deus pode aproveitar-se das rabugices humanas para fazer obra de salvação. “Qual é o maior mandamento da lei”? Sim, qual o maior? É que os fanáticos da época ocupavam-se a percorrer a lei de Moisés, frase por frase, para encontrar o que parecesse norma religiosa. E descobriram 248 preceitos e 365 proibições. Este vasto conjunto de 613 normas religiosas, na prática, era inoperante: o povo simples não só era incapaz de os cumprir como até desconhecia a maioria. Verificava-se a acusação que Jesus, com muita propriedade, tinha feito aos fariseus: “Colocais fardos pesados aos ombros do povo. Mas vós, nem sequer com um dedo tocais neles” (Mt 23, 4). Neste contexto, Jesus intervem com a sabedoria de Deus que ultrapassa todo o humano: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. Este é o primeiro mandamento e o mais importante. Mas o segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes.» (Mt 22, 37-39).

Com esta resposta, Jesus ensina-nos que só um amor apaixonado e total por Deus é capaz de regular a própria existência e de se abrir ao amor do próximo, particularmente dos pobres e dos pequeninos, a ponto de partilhar com eles o pão da palavra e o pão do corpo. É o que fazem inúmeras pessoas, lá fora e cá dentro, nessa atividade heroica que designamos por missionação ou missões, e cujo dia anual celebramos. A história das vocações missionárias é a história de pessoas que foram tocadas pela força transformante do amor de Deus e, como consequência, não regatearam a vida para si, mas a souberam colocar ao serviço da grande causa de Deus e do próximo. De facto, o amor é a essência do Evangelho. E nada, na vida dos missionários, encontra sentido e explicação fora do amor. É o amor não privatizado, oprimido, tornado mesquinho, como a nossa cultura ocidental pretende. Porque, muitas vezes, amor de si mesmo ou, na melhor das hipóteses, amor ao outro, mas para que ele me ame e me faça feliz. Amor… egoísta. Ora, o verdadeiro paradigma do amor encontra-se na cruz: é o amor de braços abertos ao mundo. Como tal, amor universal.

É por aqui que tem de passar a nossa fé cristã. Na tentativa da sua purificação e contínua difusão, particularmente entre nós, europeus, já que tantos se sentem cansados na fé, aproveitando o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, o Santo Padre acaba de declarar o próximo ano pastoral, “Ano da Fé”. Não deixaremos de o viver intensamente. E de o preparar, desde já, pela leitura meditada da Carta Apostólica “A Porta da Fé”, que o anuncia. Desde já, ressalto duas tónicas, com as próprias palavras do Papa: “Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos” (nº 11). E, entre todos, avulta, logicamente, a Missa dominical. E mais à frente: “A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra de realizar o seu caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40) (nº 14).

Caros cristãos, um dia, um jornalista americano procurou a célebre Madre Teresa para lhe pedir uma entrevista. Dirigiu-se ao seu conventinho de Calcutá, na Índia. Não estava em casa. Deram-lhe indicações onde poderia estar. Dirigiu-se para lá. Era fora da cidade. Num imenso barracão, encontrou largas dezenas de doentes e moribundos, deitados lado a lado. Muitos deles, no chão, por falta de esteiras ou de macas. O calor era intenso, o cheiro incomodativo e o ambiente insuportável, tal a presença da dor e da morte. Ao fundo, curvada sobre um moribundo, lá estava a figura franzina da Madre Teresa. O jornalista hesitou se seria capaz de atravessar aquele «vale da morte». Mas ganhou coragem e foi ao encontro da Religiosa. Como quem não pode conter o espanto, sob pena de sufocar, dispara: “Irmã, como é possível? Como é que você aguenta isto? Onde vai buscar forças para este trabalho”? Serenamente, olhou para ele, sorriu e respondeu: “A cinco horas de oração por dia, meu filho. Cinco horas de oração!”.

É. Se fizéssemos cinco horas de oração por dia, mudaríamos o mundo. Porque isso exprimiria um imenso amor a Deus. E quem ama a Deus, ama também o seu irmão.

D. Manuel Linda, bispo auxiliar de Braga

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Agência ECCLESIA

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