Homilia de D. Manuel Clemente no Dia Mundial das Missões – Congresso Missionário do Porto

Amados irmãos e irmãs, missionários que todos nos queremos, missionários que o mundo aguarda:

A missão é muito mais do que o ofício de alguns. É o mandato vivo do Pai, que tem Cristo como operação, conteúdo e companhia. Cristo alargado na Igreja, pela força do Espírito, para a feliz realização de todas as coisas (cf. Ef 1,9-10).

Das várias Leituras que acabámos de ouvir, amados irmãos e irmãs, neste Dia Mundial das Missões, uma nos terá ficado particularmente gravada, pela força da frase e a intensidade do sentimento. É de Paulo a Timóteo e ressoa assim: “O Senhor esteve a meu lado e deu-me força, para que, por meu intermédio, a mensagem do Evangelho fosse plenamente proclamada e todas as nações a ouvissem”.

Falando da missão, dificilmente seria mais pleno e mais certeiro. Na verdade, incluiu praticamente os seus elementos todos: a prevalência divina, o conteúdo levado e o destino universal que contempla.

A prevalência divina, como era clara para Paulo, pois Cristo o fizera missionário e Cristo lhe possibilitara a missão: “O Senhor esteve a meu lado e deu-me força”. É na intimidade com Cristo que o apóstolo encontra a urgência e a força de O anunciar. A estrada de Damasco em que Cristo o chamara a si, prolongara-se depois nas muitas estradas que o mesmo Cristo calcorreou com ele: “O Senhor esteve a meu lado”.

Sabem-no muito bem, todos os missionários de longe ou de perto. Sabem-no e dizem-no, dum modo ou doutro, só assim explicando a persistência, nas diversas circunstâncias e até apesar delas: o Senhor está com eles, e sentem-no porventura ainda mais quando faltam outros apoios e, ainda assim, continuam. Aliás, fazem desta convicção – de que o Senhor está com eles – o conteúdo vivo daquilo que anunciam: Cristo está vivo e faz-nos viver em plenitude, seja aonde for e venha o que vier.

O conteúdo vivo e transportado, como Evangelho certo nas incertezas do mundo. – Que é hoje a missão, caríssimos irmãos e irmãs, deste Portugal incerto e inseguro até aos mais recônditos lugares onde o pregão evangélico não tenha chegado ainda, que é hoje a missão, senão isso mesmo de garantir a presença dum Deus incarnado para nos encontrar e ressuscitado para “estar connosco todos os dias até ao fim dos tempos” (cf. Mt 28, 20)?!

Precisamente assim: nas grandes solidões das nossas cidades europeias ou na imensidão indistinta doutros continentes; entre as populações perplexas, por lhes fugir um futuro que julgavam certo, ou entre muitos mais que nem julgarão que haja futuro, tão ancestral é a indigência e a ausência de instrução e fluidez social; aqui ou ali, onde ainda se mantenham viabilidades e esperanças de recuperação, ou nos locais e sectores mais lesados pela presente crise dum sistema em que a dignidade da pessoa humana não era a base nem o objecto das políticas gerais e dos procedimentos concretos; perto ou longe, onde a religiosidade natural ainda não se tenha aberto ao Espírito de Cristo, que nos emancipa de fatalidades e medos atávicos, ou onde se trocaram o Decálogo e as Bem-aventuranças por meras vontades de satisfazer desejos ou alimentar caprichos, tão rapidamente decepcionantes ou entorpecentes: em todas estas e variadas situações, a missão consiste em proclamar plenamente a mensagem do Evangelho: Cristo está connosco, para que “tenhamos vida e vida em abundância” (cf. Jo 10, 10).

 

E, por isso mesmo, a missão não acabará nunca, enquanto houver espaço e tempo a preencher e salvar, em profundidade e extensão. Todas as nações hão-de ouvi-la, à mensagem evangélica. Mas ouvi-la, significa assimilá-la, absorvê-la e transformarem-se a partir dela, como massa levedada por bom fermento. Desdobrando-se a humanidade de todos e de cada um na progressiva compreensão de si mesma, e pesquisando-se o cosmos, do infindamente grande ao infindamente pequeno. Numa geografia tão surpreendente, claríssimo se torna que a missão vai ainda no princípio e que a urgência se redobra.

Isto mesmo nos inculcam os actuais avanços da doutrina missionária. Vamo-nos afastando da concepção tradicional, que pressupunha uma Europa “cristã”, donde sairiam mais ou menos missionários para terras longínquas. É certo que não podemos deixar de escutar o apelo divino para “partir” e levar o Evangelho até onde não tenha chegado. Com isso se renovarão as próprias comunidades de origem, que serão as primeiras a ganhar com a generosidade que gerarem. Acolheremos certamente a Mensagem de Bento XVI para este Dia Mundial das Missões, quando nos exorta directamente assim: “a consciência de ser-se chamado a anunciar o Evangelho estimula não apenas os fiéis, mas todas as comunidades diocesanas e paroquiais a uma renovação integral e a abrir-se sempre mais à cooperação missionária entre as Igrejas, para promover o anúncio do Evangelho no coração de todas as pessoas, povos, culturas, raças e nacionalidades, em todas as latitudes”.

Reparemos que o Papa fala de “cooperação missionária entre as Igrejas”. Assim urge, de facto, num vaivém que a todos faz crescer, quer em oração uns pelos outros, quer em notícias mútuas, quer em participação eventual ou mais duradoura nas missões concretas que se puderem empreender, longe ou perto. Sair, “partir” – pelo pensamento, pela oração, pela colaboração ou pela participação directa – constrói e define a Igreja, na circulação do Espírito. E também nisto se verifica a palavra de Cristo, quando garantia que quem mais recebe é quem mais dá: “A felicidade está mais em dar do que em receber” (Act 20, 35).

Esta felicidade, sentiram-na certamente as antigas Igrejas da Ásia, que enviaram os primeiros missionários à Europa, como Paulo a Filipos ou Pedro a Roma. A mesma felicidade que sentiram e sentem tantos que da Europa partiram e partem para outros Continentes, ontem como hoje.

Felicidade que igualmente sentirão os que chegam agora à Europa, provindos de jovens e pujantes Igrejas da África e outros Continentes, como referia há pouco o Cardeal Turkson, natural do Gana e actual presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz. Interrogado sobre os muitos sacerdotes que a África envia hoje para a Europa e os Estados Unidos, respondeu: “[No Gana] temos um provérbio que diz: ‘Se alguém cuida de você para os seus dentes crescerem, você deve cuidar dele quando ele os perder’. A Europa deu-nos a fé cristã e nós a acolhemos. E quanto mais esta fé é viva, mais somos gratos aos que a trouxeram. Por essa gratidão, se na Europa ou nos Estados Unidos se corre o risco de fechar uma Igreja pela falta de sacerdotes, estamos prontos para ajudar a mantê-la aberta, esperando sempre que com a ajuda do Senhor as coisas mudem”(30 Dias, 4 (2010) 30).

E mudará decerto, com um novo ímpeto missionário, de todos para todos e especialmente para quem mais precise, seja para fundar, seja para refundar a Igreja, como corpo vivo de Cristo, no mundo e para o mundo.

 

– Com que realismo, irmãos e irmãs, com que duro realismo verificamos o acerto destas palavras da Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, que João Paulo II assinou em 2003: “Em várias partes da Europa, há necessidade do primeiro anúncio do Evangelho: aumenta o número das pessoas não baptizadas […]. Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. […] Mesmo no ‘velho’ continente existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes” (nº 46)!

Falando-nos aqui no Porto, em 14 de Maio passado, Bento XVI reforçava a ideia: “O campo da missão ad gentes apresenta-se hoje notavelmente alargado e não definível apenas segundo considerações geográficas; realmente aguardam por nós não apenas os povos não cristãos e as terras distantes, mas também os âmbitos socioculturais e sobretudo os corações que são os verdadeiros destinatários da actividade missionária do povo de Deus”.

Assim é, de facto, e até dramaticamente, nas actuais circunstâncias. Mas nem os Papas nem nós quereremos dizer, com reflexões semelhantes, que o ímpeto missionário e “ultramarino” que caracterizou a Europa doutros tempos se deva restringir agora aos desafios mais próximos que todos sentimos. Nova evangelização de cristandades antigas e trabalho generoso em latitudes outras, em tudo temos de crescer, nas complexas fronteiras da missão actual. Como também devemos afastar da ideia e do desejo a equação simplista de restabelecer aqui algum “consumo religioso” pouco evangelizado e inaugurá-lo além, com as mesmas debilidades que manifestou por cá. Muito pelo contrário.

 

O que importa deveras é que todas as Igrejas locais se criem ou recriem como realidades totalmente missionárias, onde cada um encontre a melhor maneira de testemunhar o Evangelho de Cristo, perto ou longe, longe ou perto. E que tal se consiga com o contributo duma autêntica iniciação cristã, o suporte vivo de comunidades evangelizadas, o estímulo reforçado de antigos e modernos institutos missionários ad gentes, bem como de novos movimentos e iniciativas, com forte mobilização familiar e laical.

Sendo comunhão de todos no amor divino, a Igreja qualifica-se no alargamento missionário dessa mesma comunhão e só assim se legitima perante Deus e o mundo. Esta é também a insistência dos Bispos portugueses, quando escrevem, na recente Carta Pastoral “Como Eu vos fiz, fazei vós também”. Para um rosto missionário da Igreja em Portugal: “A Igreja local é o sujeito primeiro da missão […]. A missão está no âmago da Igreja, deve corresponsabilizar todos os seus membros e não pode ser delegada apenas em alguns. Não há missão eficaz sem um estilo de comunhão”. E concluem, citando João Paulo II: “a comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (nº 16).

 

 Reencontremo-nos então, caríssimos irmãos e irmãs. Reencontremo-nos como corpo missionário de Cristo para a feliz realização do mundo. Assim nos quer Deus e assim nos esperam todos, mesmo os que o não saibam. Saibamo-lo nós por eles e para eles, com o Evangelho da caridade e da paz!    

Sé do Porto, Dia Mundial das Missões e Congresso Missionário do Porto, 24 de Outubro de 2010

+ Manuel Clemente

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