Mortos para o pecado e vivos para Deus
«Na morte que sofreu, Cristo morreu para o pecado de uma vez para sempre; mas a sua vida é uma vida para Deus. Assim vós também considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo jesus»
Estas palavras que ouvimos a São Paulo, entre tantas outras que preenchem a Vigília que celebramos, pedem-nos agora uma particular atenção.
Num momento em que a graça batismal retoma a sua fonte e o seu ápice, importa considerar que significado tem em nós. Melhor dizendo, o significado que o batismo há de ganhar em cada um de nós, como sinal vivo de ressurreição para todos.
Antes de mais, reparemos na própria vida de Cristo. Nada o separou de Deus Pai, nada o distraiu dos outros, especialmente dos que mais lhe urgiam atenção e serviço. Nisto mesmo demonstrou perfeita coincidência com o Pai, dispensador da vida de cada um e que nada mais quer senão que nos realizemos absolutamente todos. Como dissera a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Cristo recuperou em si mesmo a nossa humanidade em Deus, Fonte da Vida. Tão totalmente, que a própria morte se tornou vida. Vida pelo modo como morreu, fazendo da própria morte vida também. Geralmente a morte isola e destrói a comunhão com os outros. Muito pelo contrário, a morte de Cristo foi comunhão total: Morre a perdoar aos inimigos, morre a partilhar o seu Espírito e a sua Mãe. Morre nas mãos do Pai, que lhe sustentam a cruz. Morre também às mãos dos homens, para lhes pagar em bem o mal que lhe fizeram. E foi assim, transformado o abandono em comunhão, que venceu a morte, como O celebramos agora, irrompendo como luz no negrume de todas as noites.
Caríssimos irmãos, o caminho está aberto. O caminho que levou aquelas mulheres até ao sepulcro. Aí mesmo, onde a morte dera lugar à vida. Para ouvirem, como nós também acabámos de ouvir: «Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui».
– Que será ressuscitar? Não o conseguimos abarcar totalmente agora, presos que estamos em cada lugar e duração, que tanto nos constituem um a um como nos podem isolar dos outros. E isto não se resolve apenas quantitativamente. Assim como a vida eterna não significa o tempo alongado, mas o tempo transcendido, ressuscitar não significará deixar de ser quem somos, mas sermos nós próprios doutro modo – do modo de Cristo, como absoluta comunhão com Deus, com todos e com tudo.
São Paulo disse, como ouvimos, que estaremos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus. Recebendo o seu Espírito, recebemos a sua caridade. Morrer para o pecado é morrer para a própria morte, que é o seu amargo fruto. Morte da alma que se fecha em si própria e morte do corpo que é a nossa comunicação assim desfeita. Muito pelo contrário, a caridade sempre persiste, como o verdadeiro amor que nos eterniza nos outros – e no Deus de todos.
Com Cristo e no Espírito de Cristo, tudo ressurge como vida compartilhada, outro modo de dizer Céu, plena verdade do que Deus é em si mesmo, do Pai e do Filho na unidade do Espírito. Sendo que o Filho é como que o modelo da criação inteira e da nossa condição filial, frutos que somos da benevolência divina.
É experiência certa e confirmada que todos os momentos de verdadeira caridade assinalam a vida eterna. Não nos faltam testemunhos fortes disto mesmo, como os que ouvimos a quem corresponde com generosidade às necessidades materiais e espirituais dos outros, a quem parte e a quem fica, unicamente determinado pelo bem a fazer.
A verdadeira prova da ressurreição de Cristo é a vida em ressurreição de quantos, movidos pelo seu Espírito, vão vencendo a morte pela prática do bem. Não têm pressa, senão para servir. Não têm medo, senão de ficar aquém. Não querem vida, senão para a doar e sempre mais. Assim mesmo a garantem além de si, assim mesmo a eternizam em Deus Amor.
– Quem deu pela ressurreição de Cristo, naquela madrugada de Jerusalém? Pilatos já nem se lembraria de mais um dos que tão facilmente condenava ao suplício da cruz. Anás, Caifás, os outros que o condenaram também, estariam até contentes por terem vencido alguma hesitação do procurador romano. Tudo estaria resolvido e encerrado com aquela grande pedra do sepulcro… Dois milénios transcorridos, todos esses passaram, como muitos outros que condenaram inocentes para se guardarem apenas a si próprios, por segurança ou conveniência.
Entretanto, aquelas mulheres deram por isso. Também os discípulos acabaram por perceber. E assim começaram uma cadeia de vivências e testemunhos que constituem a substância da Igreja e da nossa condição batismal. Sim, a vida de Jesus venceu a morte. Sim, o seu Espírito reproduz em nós a mesma vitória. Sim, o que celebramos nesta noite tornou-se a alvorada do mundo.
– E de qual mundo, podemos perguntar? Deste nosso mundo, e como cabe precisamente a cada um. Ouvimos a indicação do jovem de branco, sentado no sepulcro vazio: «Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele vai adiante de vós para a Galileia. Lá o vereis, como vos disse».
A Galileia era a terra deles, donde tinham partido. Aquela terra bem concreta, com nomes de cidades, gentes e ofícios. A terra deles, como a terra de cada um de nós, na vida de todos os dias. Onde também não faltam nomes, pessoas e tarefas, tudo aí mesmo, como está e como requer presença, atenção e cuidado. Aí mesmo nos espera o Ressuscitado. Aí mesmo O veremos e testemunharemos, precisamente agora. Aí mesmo, onde houver vida a proteger, da conceção à morte natural. Aí mesmo, onde houver pessoas a acompanhar, com prioridade para os mais pobres, mais frágeis ou mais sós. Aí mesmo, onde tantos nos esperam e o próprio Cristo nos aguarda.
Aí mesmo, em todo o tempo e circunstância que requerem testemunhas autênticas da ressurreição de Cristo. Como seremos nós e tanto mais quanto compartilharmos a sua caridade, o seu ser para os outros, maneira total de permanecermos na Vida que vence a morte, a Vida que não tem fim, porque «o amor jamais passará»! (1 Co 13, 8).
– Sim, caríssimos irmãos, também por nós, a ressurreição de Cristo alegrará o mundo!
Sé de Lisboa, 31 de março – 1 de abril de 2018
+ Manuel, cardeal-patriarca