Homilia de D. José Policarpo na solenidade de São Vicente, padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa

 “São Vicente e o combate da Fé”

1. Quisemos que a reabertura desta Igreja, dedicada a São Vicente, Padroeiro da Diocese e protector da Cidade de Lisboa, se realizasse na solenidade litúrgica do Mártir São Vicente. Esta circunstância permite um gesto de grande significado histórico: venerar, nesta Igreja, as relíquias do Santo Mártir de Saragoça.

Parece que, na intenção de D. Afonso Henriques, ao ir buscar as relíquias de São Vicente, o seu destino seria, precisamente, esta Igreja de São Vicente de Fora. Essa iniciativa do nosso primeiro Rei visava dar um sinal de esperança às comunidades de cristãos moçárabes, que tinham por São Vicente uma particular devoção. Uma paragem provisória numa igreja de Lisboa permitiu que se gerasse um movimento de levar as relíquias para a Catedral, onde ainda hoje são veneradas.

Os cronistas não nos fornecem dados justificativos desta opção. Perceberam, certamente, os Cónegos da Catedral, que era preciso estender a protecção do Santo Mártir a toda a Cidade recentemente conquistada. Tensão da Igreja, entretanto organizada em Lisboa, composta de residentes e cruzados, de quantos tinham participado na conquista da Cidade, com as comunidades moçárabes, dispersas por uma vasta periferia da Cidade, facto testemunhado pelas igrejas que ainda hoje têm São Vicente como orago, como Alcabideche, Vila Franca de Xira e Cercal? Uma coisa é certa: ao fazer da Catedral o lugar de veneração das relíquias, acentuou-se a relação de São Vicente com toda a Cidade, com toda a Igreja diocesana, ultrapassando o particularismo das comunidades moçárabes. Protector de Lisboa, São Vicente passou a integrar, do ponto de vista cultural, a simbólica da Cidade de Lisboa.

Esta igreja, hoje reaberta ao culto, depois de volumosas obras de conservação, não é a Catedral, mas está integrada na Sede do Patriarcado. São Vicente, um dos oragos do Templo, sente-se aqui bem e uma sua visita mais frequente seria desejável, o que não porá em questão o facto de a Sé Patriarcal ser a sua casa.

 

2. Merece a pena perscrutar a origem e o sentido desta devoção das comunidades moçárabes ao Santo Mártir de Saragoça. Antes de mais, quem são os moçárabes? São os cristãos que resistiram e se organizaram sob o domínio muçulmano de parte da Península Ibérica. Nesse longo período de sete séculos, isso exigiu dos cristãos resistência à perseguição, à discriminação social, à sobrecarga injusta de impostos e a uma inevitável aculturação. E encontraram em São Vicente um modelo de integração da perseguição e do sofrimento, na exigência da fidelidade à fé cristã. De facto, o martírio é o maior testemunho da fidelidade a Jesus Cristo. É o não defender a vida presente à custa da perda da plenitude de vida que nos é dada por Jesus Cristo; supõe a consciência de que o sacrifício é portador de conforto e de alegria. São Paulo di-lo claramente na Carta aos Coríntios que agora escutámos: “Do mesmo modo que abundam em nós os sofrimentos de Cristo, assim por Cristo abunda igualmente a nossa consolação. Se somos atribulados, é para serdes confortados e salvos (…) e esse conforto mostra-se eficaz na constância com que suportais os mesmos sofrimentos” (2Cor. 1,5-7).

Cristo é, para nós, a promessa da Vida e da alegria da ressurreição. Mas o cristão participa, igualmente, dos sofrimentos de Cristo que vividos em união com Ele, participando da sua fidelidade, são semente que desabrochará em consolação. O Santo Mártir é para esses cristãos perseguidos um testemunho e um intercessor. Com ele, aceitam melhor que ser cristão pode ser um caminho de Cruz que é também o caminho da vida, da alegria e da consolação. Ao celebrarmos São Vicente, queremos ter presentes, confiando-os à sua protecção, todos os cristãos que hoje, em tantos países do mundo, são perseguidos, por vezes até à morte.

 

3. Precisaremos hoje, na nossa vida e na vida da nossa cidade, desta intercessão de São Vicente? Vivemos numa sociedade que eliminou a perseguição violenta contra os cristãos e esse é um progresso de civilização. A Igreja faz parte da cidade e o seu contributo para o bem-comum é reconhecido, embora nem sempre desejado. Mas isso não anula o aviso de Jesus aos discípulos de que segui-l’O era umrisco e tinha um preço. Que significa, hoje, o aviso de Jesus que escutámos no Evangelho: “cautela com os homens”?

Viver o cristianismo a sério no mundo de hoje é travar um grande combate. A cultura secularista não persegue, mas ataca, vai tentando reduzir o espaço humano para a fé, tornando-se quase uma religião alternativa. Bento XVI disse recentemente com clareza que a nova evangelização supõe um grande combate espiritual: “O que importa é que procuremos viver e pensar o cristianismo de tal modo, que ele absorva o moderno que é bom e está certo e, ao mesmo tempo, se separe e diferencie do que é contra a religião”. Este combate da fé tornou-se um combate cultural com densidade espiritual. É ainda Bento XVI quem o diz: “muitas vezes perguntamo-nos como é possível que cristãos que, pessoalmente são crentes, não tenham força para reforçar a acção política da sua fé. Temos sobretudo de procurar que as pessoas não percam Deus de vista. Temos de procurar que, depois, elas próprias, a partir da força da sua própria fé, entrem no confronto com o secularismo e consigam concretizar a separação das mentalidades. Este enorme processo é a verdadeira, a grande missão deste tempo. Só podemos esperar que a força interior da fé, presente no homem, se torne publicamente potente, moldando o pensamento, e que a sociedade não caia simplesmente no abismo” (1).

Neste combate, os cristãos fragilizam-se quando, em espírito de pseudo-abertura, adoptam os critérios da cultura secularista e substituem o testemunho e a mensagem da fé por um discurso que o mundo gosta de ouvir. O aviso de Jesus concretiza-se hoje, de outra maneira: cautela com os homens que procuram reduzir o espaço humano e cultural da fé; cautela com os cristãos que, para serem ouvidos pelo mundo, não têm coragem para proclamar a mensagem de Cristo. Este campo de batalha é a nossa sociedade. São Vicente, fiel a Jesus Cristo até ao dom da própria vida, será, também agora, nosso modelo e nosso intercessor.

Igreja de São Vicente de Fora, 22 de Janeiro de 2011

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

 

1 – BENTO XVI, Luz do Mundo, pp. 62-63

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