Homilia de D. Jacinto Botelho na Missa da Ceia do Senhor

Depois de termos celebrado de manhã com o Presbitério de Lamego o Pontifical Crismal, abrimos nesta solene Eucaristia da Ceia o assim denominado Tríduo Pascal que culminará na Missa da Vigília Pascal e se prolongará como um longo Dia até ao Pentecostes.

Mas para a Paroquia da Sé é hoje o seu dia por excelência, o dia da comunidade, o dia da Comunhão Pascal, celebrada tão significativamente nesta Eucaristia Memorial da Ceia.

Toda a Igreja Católica vive, por decisão do Santo Padre, desde a última até à próxima Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, o Ano Sacerdotal. Temo-lo vivido com interesse e generosidade, evocando com respeito, admiração e sufrágios, eclesiásticos falecidos do nosso presbitério, reflectindo sobre a riqueza e a graça do ministério ordenado, e sobretudo com os especiais e multiplicados tempos de adoração ao Santíssimo Sacramento, pedindo para os nossos sacerdotes a Graça da fidelidade, à imitação da fidelidade de Jesus.

O ano em curso é por isso, também oportunidade para aprofundarmos a nossa consciência de pertença a um povo sacerdotal, participantes do sacerdócio comum dos fiéis. Recordemos o ensino do Catecismo da Igreja Católica: “Cristo, sumo sacerdote e único mediador, fez da Igreja «um reino de sacerdotes para Deus Seu Pai». Toda a comunidade dos crentes, como tal, é uma comunidade sacerdotal. Os fiéis exercem o seu sacerdócio baptismal através da participação, cada qual segundo a sua vocação própria, na missão de Cristo, sacerdote, profeta e rei. É pelos sacramentos do Baptismo e da Confirmação que os fiéis são «consagrados para serem um sacerdócio santo».” E explicita o Catecismo logo a seguir: “O sacerdócio ministerial ou hierárquico dos bispos e dos presbíteros e o sacerdócio comum de todos os fiéis – embora «um e outro, cada qual segundo o seu modo próprio, participem do único sacerdócio de Cristo» – são, no entanto, essencialmente diferentes, ainda que sendo «ordenados um para o outro». […] O sacerdócio comum dos fiéis realiza-se no desenvolvimento da vida baptismal – vida de fé, esperança e caridade, vida segundo o Espírito.”

Trata-se do testemunho do autêntico discípulo de Cristo que havemos de dar em todos as circunstâncias, afirmado duma forma consciente e responsável nesta Comunhão Pascal, preparada seriamente no sacramento da Penitência, o qual sempre nos empurra para a conversão, com propósitos firmes de emenda e o compromisso exigente «duma vida santa e duma caridade eficaz».

Na Missa da 25.ª Jornada Mundial da Juventude celebrada na Praça de S. Pedro em Roma no passado Dia de Ramos, referiu Bento XVI na homilia a subida para Jerusalém,  símbolo e imagem “do movimento interior da existência, que se concretiza no seguimento de Cristo: subida para a verdadeira altura de sermos homens”. E o Santo Padre convida-nos à reflexão: “O homem pode escolher uma vida cómoda e evitar tudo quanto é fadiga. Pode ainda descer ao que é baixo, à vulgaridade. Pode atolar-se no pântano da mentira e da desonestidade. Cristo caminha diante de nós e dirige-se para o alto. Ele conduz-nos em direcção ao que é grande e puro, conduz-nos para os ares despoluídos das alturas: para a vida segundo a verdade; para a coragem que se não deixa intimidar com o charlatanismo das opiniões dominantes; para a paciência que suporta e auxilia os outros. Conduz-nos para a disponibilidade em relação aos que sofrem, aos abandonados; para a fidelidade que há da parte do outro, mesmo quando a situação se torna difícil. Conduz-nos para a disponibilidade em prestar ajuda; para a bondade que nem a ingratidão desmotiva. Conduz-nos para o amor – conduz-nos para Deus.” Belíssimo programa de renovação pascal que nos empenharemos em seguir, até numa atitude de comunhão com Sua Santidade, cuja visita em Maio próximo, assim prepararemos, abrindo desde já o coração à riqueza da sua mensagem. 

O contexto sócio-religioso que vivemos não se compadece com atitudes de ambiguidade: exige de nós, com a transparência inequívoca do comportamento, o desassombro do testemunho, sempre sereno e humilde, mas firme e claro. Ligados a uma sociedade onde a corrupção encapotada quase parece prevalecer à dignidade e à justiça, perante uma legislação que não respeita o dom inviolável da vida humana desde a concepção ao derradeiro instante da existência, promovendo e subsidiando mesmo, com dinheiros públicos, práticas abortivas; diante duma errada e aberrante concepção de família já votada e aprovada por maioria na Assembleia da República, acto que foi sublinhado por quem nos governa como expressão de modernidade e passo de gigante na afirmação do nosso progresso cultural, a resposta determinada não pode ser senão a discordância, tanto na linha do pensamento, como no agir.

Permiti que repita o que esta manhã já afirmei na Missa Crismal. A Igreja sofre nos últimos tempos uma dolorosíssima provação que não pode deixar-nos insensíveis. Amemos muito a nossa Mãe, a Igreja santa, mas também pecadora, e rezemos por todas as vítimas inocentes, porventura irremediavelmente marcadas para toda a sua vida; amemos a Mãe Igreja e rezemos e sacrifiquemo-nos pelos culpados que deveriam apresentá-la pura e imaculada, e com o seu torpe comportamento a conspurcam; amemos a Santa Igreja e rezemos por aqueles que com falsidades a insidiam, com o exclusivo objectivo de desacreditá-la, infamando-a e caluniando-a, na pessoa dos que por vocação ministerialmente a servem.

O sacrifício que o livro do Êxodo impõe como obrigação aos filhos de Israel, é figura do sacrifício de Cristo que revela o amor infinito de Deus por cada homem «até ao fim», o amor «maior»: o amor que leva a «dar a vida pelos amigos». O pensamento é de Bento XVI, recordado no Plano de Pastoral que este ano temos seguido. Celebramos, aqui e agora, de modo particularmente significativo o seu memorial, a Ceia do Senhor, descrita com extrema preocupação de fidelidade por S. Paulo na segunda leitura. “Cada Eucaristia actualiza sacramentalmente a doação que Jesus faz da sua própria vida por nós e pelo mundo inteiro […] e impele todo o que acredita n’Ele a fazer-se «pão repartido» para os outros e consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e mais fraterno”.

O caminho é o do serviço humilde para com todos, como nos ensinou Jesus no Lava-pés tão sugestivamente evocado já a seguir, dispondo-nos a celebrar a nossa Comunhão Pascal com a consciência e responsabilidade de discípulos seus. Há, para todos nós, pés a lavar, nos gestos simples da delicadeza e da amabilidade, calando os sentimentos de vingança, as manifestações de orgulho que levantam barreiras de oposição, os modos agressivos que distanciam e provocam respostas de hostilidade ou corte de relações. A quem me pede o Senhor que lave os pés? Pensa e não abandones esta Sé sem concretizar um propósito. O largo tempo, até à tarde de amanhã, em que o Santíssimo Sacramento, na Sagrada Reserva, lembrando a Sua violentíssima agonia e solidão no Horto das Oliveiras, espera a consolação e o desagravo da nossa presença, pode ser uma excelente ocasião para consolidarmos a sinceridade das nossas disposições interiores.

Que a Senhora da Assunção, titular desta Catedral, a apontar-nos, a meta definitiva da existência, acompanhe com solicitude de Mãe o nosso caminhar, e nós saibamos comportar-nos, em cada dia, com a dedicação e a responsabilidade de filhos.

D. Jacinto Botelho,
Bispo de Lamego

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