Homilia de D. Carlos Azevedo nos 150 anos dos Vicentinos em Portugal

Ao longo de 150 anos, graças às Conferências Vicentinas, em Portugal, como anuncia Jeremias, muitas lágrimas se transformaram em consolação, muitos caminhos para a verdadeira vida foram abertos por vidas entregues. Damos graças a Deus.

Recolhamos as lições da Palavra da liturgia deste domingo. Encontramos indicações oportunas. Aprendamos como experimentar o sacerdócio de Cristo na dedicação ao serviço social.

1. Neste ano sacerdotal, saboreemos um texto que raramente meditamos. Jesus é o sumo-sacerdote que tomou sobre si as nossas penas mais profundas e as nossas orações mais simples. Mas a comunidade a quem se dirige o sermão aos hebreus questionava-se: como pode um Jesus sofredor na cruz, recusado e derrotado, ser alguém com curriculum para ser sumo-sacerdote? A isto responde o texto da segunda leitura. O Pregador descreve as qualificações de Jesus para mostrar como superam as exigências requeridas para o lugar. Ele é o ministro justo para o ministério justo. Os sacerdotes do passado estavam inseridos num ordenamento provisório que Deus disponha para um tempo específico da história, enquanto o sacerdócio de Cristo tem eterno futuro. Como os “escolhidos entre os homens” Jesus é mediador entre Deus e a humanidade, mas é superior aos sacerdotes do passado porque não é só mediador, mas fonte da salvação, porque se ofereceu a si próprio, uma vez por todas. Não precisa de ir muitas vezes ao altar por novos pecados e para novos sacrifícios porque o seu ministério é eterno.

Por outro lado, os sacerdotes do passado não eram meros funcionários litúrgicos que mecanicamente exerciam os seus deveres, também eram pastores: recebiam ofertas como sinais simbólicos dos mais profundos segredos da vida, dos pecados e culpas, temores e esperanças, da fome de salvação. Deviam ser pessoas compassivas que compreendiam as fraquezas humanas. Com sua doçura e indulgência tratavam os pecadores. Como também eram pecadores, apresentavam sacrifícios por eles e pelo povo. Jesus é também um pastor bom e compassivo, conhece as dores e ambiguidades da condição humana, incarna esta vida com seus limites e debilidades. Jesus gritou no meio do sofrimento. Como sofredor Jesus realiza uma tarefa pastoral, carregada de humanidade. Mas a sua humanidade não desesperava, não se perdia no pecado. O sofrimento não é pecado, faz parte da condição humana. Limite e fraqueza não são pecado, caracterizam o ser humano. Mas Jesus aprendeu aí a obediência, não esqueceu ser Filho e pode conduzir o perdido a casa.

Os sacerdotes do passado não tinham a presunção nem a arrogância de se oferecerem como voluntários nem de pretenderem honra para si próprios. Eram chamados por Deus. Serviam uma missão. Também Jesus não procurou para si a glória, era designado pelo Pai. Não tinha só a missão sacerdotal, mas a filial, não tinha duração limitada mas era eterna.

Meus caros vicentinos e vicentinas: tomar sobre si as questões mais fundas, com doçura e indulgência, conhecer e assumir as situações dos que nos rodeiam com plena humanidade, com visão larga do tempo e preocupados com medidas que tenham futuro é ser como Cristo sacerdotes. Oferecer-se a si próprio e não exigir aos outros, participar e não esperar que sejam outros, intervir com prontidão implicando-se nas decisões, com amor real, sólido, resistente é ser como Cristo sacerdotes. Realizar a missão como chamados por Deus e não sendo actores e agentes sociais por conta própria é ser fiéis ao estilo de Jesus único sacerdote.

2.No Evangelho, vemos Jesus a exercer o seu sacerdócio. Jesus está a caminho. Segue-o grande multidão. Há um grito. Há uma vibração do meio do barulho da multidão. A multidão cala os gritos, sente-se incomodada pelos gritos inconvenientes. Mas Jesus está atento aos que do meio da multidão vibram com a sua passagem. Hoje também há quem pretenda calar os gritos de socorro com arrevesadas teorias. Atenção! Os métodos são subtis. Ai dos cristãos na sua participação política e económica quando esquecem os problemas profundos e se ficam pela rama superficial de questões secundárias relativas a direitos individuais em detrimento da luta por direitos sociais!

Jesus comove-se. Pára. Chama. É benevolente e dialoga. Mostra a sua atenção de pastor, a sua qualidade de escuta dos apelos para fazer também ele apelos à multidão, para que não abafe os gritos dos necessitados.

É a pedagogia de Jesus em acção. Razão tem o cego para que lhe chamar Mestre, depois de, na aflição do pedido de ajuda, lhe ter chamado Filho de David, com referência ao Antigo Testamento. Mas perante a novidade do seu comportamento, da sua atenção chama-lhe Mestre. Tem razão. A fé do cego revela-se nos seus actos, nas suas atitudes: deixa a capa, dá o salto, vai ter com Jesus.

Jesus não é um mestre paternalista, não recorre a métodos assistencialistas. Requer que cada pessoa tome a iniciativa e faça o seu caminho pessoal. Jesus quer de tal modo deixar a iniciativa, a demonstração da sua real verdade, sem complexos de perguntar ao cego o que ele quer. Era evidente! Jesus quer ouvir a voz dos pobres. Importava tomar consciência de que Deus nos liberta, nos consola, nos faz abrir os olhos para ver os outros com novos olhos, nos abre a mente. Há um caminho a fazer para a liberdade, mas a fazer com consciência, não por mero impulso repentino sem consequências.

Vai – a tua fé te salvou! É assim Jesus. Não quer pasmados à sua beira. Não lhe abriu os olhos para ele ficar a olhar para Ele, mas para o salvo também ver agora as necessidades dos outros e fazer-se discípulo, seguir o seu caminho. O caminho da fé vem da consciência, apesar dos obstáculos. Já Jeremias previa, na sua experiência, a salvação a chegar como luz. Jeremias partiu a chorar mas regressou a cantar. Na salvação tudo depende da iniciativa de Deus. É Deus que salva, que cura, que abre os olhos para a salvação. Somos nós, seu povo, que temos que tirar fora a capa, saltar, pormo-nos a mexer.

3. Caríssimos vicentinos: celebrar 150 anos de acção pastoral atenta aos mais carenciados é para vós reconhecer que, como a Ozanam, é a escuta dos gritos aflitos e a luz da Palavra de Deus que vos põe no caminho do seguimento de Cristo. É a comunhão com Cristo que dá nova visão, a visão da fé para olhar os gritos clamorosos ou os apelos abafados e surdos nos dias de hoje.

Sabeis como a conversão para ir ao encontro, para seguir o caminho requer despojamento do que é estragado, dos sinais do passado para redescobrir a beleza ágil do homem novo. A Igreja em Portugal pede-vos esta renovação para corresponder como povo sacerdotal às propostas exigentes de inovação social. A vossa firmeza na oração é raiz para manter a identidade do modo como acolheis e tratais os problemas sociais. As vossas entregas escondidas aos mais sós e abandonados, aos mais perdidos e sem horizontes, aos mais feridos na sua dignidade são sacerdócio vivo. As comunidades são mais povo sacerdotal pela agilidade da vossa mediação, ao serdes para a sociedade sinal de um Reino novo.

 D. Carlos Azevedo

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