Ao comemorar 150 anos de serviço aos outros, quis a Sociedade de São Vicente de Paulo reunir-se aqui para dar graças ao Deus misericordioso por tantos dons do alto e para renovar a sua disponibilidade na dedicação aos mais carenciados. Os Bispos de Portugal alegram-se com a entrega generosa de tantas vidas, unem-se à vossa determinação de ser rosto de bondade junto de tantos pobres. 1.A Palavra de Deus orienta os passos da nossa celebração festiva. Nos Actos dos apóstolos fazemos memória da beleza da vida em comunidade, na igreja primitiva. Essa continua a ser a proposta cristã, o ideal a manter vivo, não obstante a grande mudança dos tempos e a hora dramática que a sociedade atravessa. Continua firme a provocação: “Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum”. Na doutrina social da Igreja, o direito à propriedade privada tem como fonte o princípio do destino universal dos bens naturais, na fidelidade à vontade do Criador. Deve facilitar-se a todos, indivíduos, famílias e povos o acesso a alguma forma de propriedade, até como exigência primária do desenvolvimento económico e progresso social. Este direito não é porém uma faculdade absoluta e intocável. Porque a propriedade é individual, mas não individualista. A individualidade está marcada radicalmente pelo valor social. A propriedade está subordinada á necessidade comum e ao princípio superior do destino universal dos bens. A propriedade individual procede do trabalho e do salário e serve para o bem do próprio e da sua família, mas aponta para o bem geral e para a justa repartição da riqueza. Os bens próprios não são somente próprios, nem sequer principalmente próprios. A abertura dos bens ao uso do necessitado impõe-se pela hierarquia de valores. O Magistério da Igreja ensina que perante Deus a propriedade privada é na realidade administração pessoal de bens comuns repartidos. Quer o direito aos bens quer o seu uso estão limitados pelas necessidades do bem comum. De facto, quando vivida correctamente, a propriedade privada é expressão da pessoa humana plena, concedendo-lhe ocasião para exercitar responsavelmente a sua função na comunidade política e económica, com liberdade e autonomia. O Estado é chamado e intervir para harmonizar a propriedade privada com as exigências do bem comum, sem arbitrariedades e conivências. Ao Estado compete regular, vigiar e fomentar a propriedade privada em ordem a garantir o bem comum. O destino universal dos bens temporais atinge ainda uma faixa enorme de situações angustiantes, de graves necessidades. O pleno remédio par tanta indigência humana só acontece pela caridade social, admirável terreno no qual trabalhais, caríssimos vicentinos e vicentinas. Aqui vai-se além da função social da propriedade. O convívio social pede uma intervenção complementar insubstituível. A caridade social completa o trabalho que a justiça social é chamada a desenvolver na reforma da economia. Hoje, meus caros, um bem a repartir é o trabalho. Os empresários cristãos são chamados a manter e se possível a criar emprego, dentro da viabilidade realista e cedendo a lucros desmedidos. Quem tem multi-emprego deve repartir, renunciando também ao nível de vida a que se habituou. Impõe-se a redução dos absorventes conselhos de administração que desnecessariamente sugam rendimentos. Convém que demos conta de que o emprego nunca mais vai ser como anteriormente. Não são necessárias tantas pessoas, em virtude do desenvolvimento tecnológico e da globalização da produção. Urge mudar estilos de vida, criar modos alternativos de vivência comunitária, com opção pela austeridade e simplicidade de vida. Importa reinventar a solidariedade. 2. Caros irmãos e irmãs: a comunidade cristã mostra a verdade destes princípios no terreno visível do bem, na evidência dos gestos. É que como Tomé os nossos contemporâneos querem ver a doutrina feita verdade de vida. Se as pessoas não vêem, não dão crédito às palavras bonitas. Tomé não só quer ver nas mãos de Jesus os sinais dos cravos, mas quer meter o dedo no seu lado aberto. Quer verificar pelos sentidos para se certificar que não é engano, ilusão. Quer controlo físico, que não reprovamos. Jesus oferece-lhe a possibilidade de comprovar e avançar na fé. Somos todos convidados a aprofundar esta credibilização da fé. Nem todos são como João que vê os lençóis do túmulo e, sem ter visto, acredita. Nem todos são como Madalena que vê e reconhece Jesus quando chamada pelo nome. Nem todos são como os discípulos que vêem e acreditam. Tomé quer ver e tocar para chegar depois aquela expressão clara de fé: Meu Senhor e meu Deus. Jesus é Senhor, o crucificado foi exaltado. É Jesus de Deus As palavras de Tomé são a voz do povo iluminado pelo Espírito que afirma e confirma a nova aliança: Jesus é Senhor, Jesus é de Deus. A profundidade da fé cresce com as dúvidas postas, renasce graças à experiência dos dedos metidos na doação de Jesus, representada pelos cravos e pelo coração aberto pela lança. A comunidade primitiva continuava a ser expressão o Corpo do ressuscitado. Nas comunidades vivas dos seguidores de Jesus demonstra-se a atenção e doação aos necessitados. Quem quisesse tocar a vivência real da fé e dissipar as dúvidas podia ter acesso à partilha fraterna dos bens. Quem podia ponha em comum com quem precisava. Assim continua a acontecer. Cristãos que entregam bens e dizem aos responsáveis das comunidades: “disponha para o que vir mais necessitado”. É este hoje o Corpo do ressuscitado. É este hoje o lugar dos cravos, dos sinais da entrega, a revelar aos que duvidam, a verdade da fé, a alegria da esperança, a bem-aventurança dos puros de coração entregues, com rectidão, à fantasia da caridade, na vida real. Cristo de há 2000 anos continua vivo no simples quotidiano de hoje. Aumentemos as respostas prontas para as necessidades novas e veremos entrar-nos na comunidade os que andam à procura de sinais de comunhão de um Deus cheio de misericórdia, que muito os ama. D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa, presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social