1. “Ao ver isto”, o fariseu da narração evangélica fica impressionado. O que vê? O pecado social da mulher que ousa lavar os pés a Jesus com lágrimas, servir-se dos cabelos como toalha e ungi-los com perfume. O fariseu vê isto e pensa consigo, melhor: pensa a contar só consigo, fica no simplista debate interno, centrado no seu preconceito, metido na sua mentalidade de exclusão. E Jesus apanha-o exactamente no olhar e pergunta: “Vês esta mulher?”. É que o fariseu está a ver-se a si, nas suas ideias, nos seus clichés e não vê livremente a realidade. Era preciso olhar de novo e então dar-se conta de toda a verdade, reconhecer o contraste entre os gestos de ternura da mulher e a falta de hospitalidade manifestada por ele, reveladora de certo desprezo para com Jesus, apesar de o ter convidado para sua casa, talvez mais por si do que pelo profeta de Nazaré.
“Ao ver isto”, a interrogação faz-se geral: “Quem é este?”. Donde vem a raiz de um perdão provocante. Dar-se até perdoar inquieta e suscita questões. Quem é que se deixa amar assim, porque portador de um amor infinito?
É este o estilo de Jesus, revelador do amor de Deus. Supera os males do mundo, perdoa os pecados, entrega-se verdadeiramente, permitindo as ousadias da mulher pecadora, capaz de lavar os pés ao pobre Jesus, mal recebido pelo importante fariseu.
Superar o pecado, seja dos drogados ou dos banqueiros, só acontece por um encontro que aproxime do dom, chegue à delicadeza do perdão, converta o interior e transforme a posse em dádiva. A profunda mudança de estilo de vida implicará compromisso comunitário e revolução na mentalidade dos gestores e dos agentes políticos.
Como afirma o texto paulino de hoje, não abraçamos a fé em vão (1 Cor 15) e todo o processo da vivência da caridade cristã decorre do mistério pascal de Jesus. Requer morrer para si, desapego de visões limitadas para abrir-se à novidade do renascer, de ressuscitar na inovação das atitudes.
É por graça de Deus que somos discípulos na lógica da gratuidade e trabalhamos, por graça de Deus, neste campo, pertencendo a comunidades cristãs, sob inspiração de diversos carismas, integrados em instituições com orientações específicas. Por graça de Deus, somos chamados a viver, a seguir o estilo profético de Jesus, exigente nas atitudes, pautadas pelo puro dom, pela beleza da entrega.
2. Ao longo destes três dias vimos isto, olhamos para a condição pecadora da sociedade. “Ao ver isto” sentimo-nos todos responsáveis. O pecado é inicialmente de pessoas concretas, mas plasma-se em relações, situações e organizações negadoras da pessoa e contrárias ao plano de Deus. Somos solidários no mal moral ou no pecado. Pode parecer estranha a expressão “solidariedade no mal”, mas é poderosamente verdadeira. Os meus pecados são de todos e prejudicam a todos. Os dos outros são meus e prejudicam-me. O pecado do mundo é uma grande ferida do corpo total que sangra em todos. Todo o corpo social é afectado pelo assédio da maldade, sem respeito pelo bem comum, insensível aos pobres. A grande contaminação do individualismo e do domínio sobre os outros atinge-nos. Este pecado social fere sobretudo os pobres e excluídos, chegando a destrui-los como pessoas. Aliás, a gravidade do pecado pessoal pode medir-se pela intensidade dos seus vínculos com o pecado social. Romper, por isso, com o “pecado do mundo” (Jo 1,29; 15,18), lutar contra o mal é caminho de conversão. Fomos educados no pecado de não “ver isto”. Taparam os pobres com as vitórias dos ricos. A sede de triunfo particular envenenou o ambiente, debilitou em muitos corações o serviço humilde dos outros.
A humanidade aspira ansiosamente por libertar-se desta lógica escravizadora, também presente no mercado: “quem nos liberta desta força que leva à morte?” (Rom 7), deste modelo de desenvolvimento que nos sequestra o futuro? Seria trágico, se Jesus não tivesse transformado a solidariedade na desgraça em solidariedade universal na graça.
Aceitemos o convite para sair do círculo da solidariedade do pecado, para entrar na solidariedade da salvação de Jesus. A causa de Jesus, a salvação da humanidade e do universo, passa por enfrentarmos a injustiça e a pobreza.
O perdão misericordioso com que Jesus enfrenta o pecado das pessoas, não nos fecha os olhos para ver o domínio de perspectivas negativas, para sentir e vibrar com os desastres que essas visões provocam. A lógica do amor impele-nos a actuar. A força do Espírito, presente na Palavra escutada, faz-nos fermento de um futuro novo. Não podemos continuar a juntar-nos à lógica farisaica. Não podemos inibir-nos. Resta opor-nos, com energia sempre refeita, ao pecado do mundo, na sociedade portuguesa e em cada um de nós, para construir a solidariedade da graça, o dar-se de verdade.
Desejamos multiplicar gestos de amor porque somos muito amados, muito perdoados. É maravilhoso ver como lágrimas de conversão podem ser refrescantes para os pés de construtores de uma sociedade segundo o coração de Deus. Teremos de apressar os passos para socorrer tantos aflitos. Teremos de inovar caminhos pastorais para, muito coesos, ir ao encontro de soluções justas e dignas. O amor recriador de Deus acende-nos a esperança.
Fátima, 16 de Setembro de 2010
D. Carlos Moreira Azevedo
Presidente da Comissão Episcopal de Pastoral Social