Homilia de D. António Carrilho na Missa de Quarta-Feira de Cinzas

Caminhar no Espírito, transfigurados pelo Amor Conduzidos pelo Espírito do Senhor, fonte de Vida e de Alegria, iniciamos, nesta quarta-feira de Cinzas, o tempo litúrgico da Quaresma. É o tempo privilegiado na vida da Igreja, para, em jubilosa esperança, prepararmos alegremente a Páscoa do Senhor e crescermos no amor de Deus e dos irmãos. Liturgicamente, fazemos memória, dos quarenta dias em que Jesus, conduzido pelo Espírito, permaneceu no deserto, na oração e no jejum, antes de iniciar a Missão que o Pai lhe confiou (cf. Mt 4, 1-2). Na Bíblia, o “deserto”, com a cumplicidade de um mundo árido, evoca realidades históricas, ânsia de liberdade e fortes experiências com Deus. Foi no deserto que Deus renovou a sublime aliança de Amor com o seu povo (cf. Ex 19, 5) e entregou o Decálogo a Moisés, no Monte Sinai (cf. Ex 20, 1-18). O deserto é o lugar por excelência de retiro, silêncio, procura e grande densidade espiritual. A Igreja Universal, na sua multissecular experiência e sabedoria, propõe aos seus filhos um percurso espiritual, concreto e dinâmico, em ordem a uma profunda conversão interior e exterior, que ajuda à transfiguração e configuração com Jesus Cristo, e traduz-se em gestos concretos de solidariedade fraterna. A simbologia da cerimónia das Cinzas, que nos recorda a fragilidade e finitude do homem, e o texto do Profeta Joel, que acabámos de escutar, são um veemente apelo à urgência de conversão e arrependimento sinceros: “rasgai o vosso coração e não os vestidos. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus” (Jl 2, 12). É perante um Deus amigo, clemente e compassivo, lento para a ira, rico de bondade e cheio de misericórdia, que não usa a violência para castigar o pecador (cf. Jl 2, 13), que o homem se vê confrontado e desarmado, pela oferta do Seu perdão sem limites e da Sua imensa ternura. Optar pelo mal é dizer “não” ao amor do Deus da Aliança, com profundas repercussões eclesiais e sociais. Bento XVI, consciente de que a verdadeira conversão começa no coração do homem, convida todos os filhos da Igreja a uma maior assiduidade na oração, na escuta orante da Palavra, “Lectio Divina”, no recurso ao Sacramento da Reconciliação e na participação na Santa Missa dominical (cf. Bento XVI, Mensagem para a Quaresma de 2009). Um percurso de intimidade com Cristo S. Paulo, impelido pela caridade de Cristo, pede aos irmãos da comunidade de Corinto, que, “pelo amor de Cristo se reconciliem com Deus” (2Cor 5,20). Na teologia Paulina, Cristo Crucificado assume o nosso mistério de iniquidade, “fez-se pecado por amor de nós” (2Cor 5, 20), para nossa salvação. A loucura e sabedoria da Cruz, que tanto apaixonam Paulo, são a visibilidade do indizível amor do Pai pela humanidade. Suprema bondade divina, que se revela na entrega voluntária do Filho, como Cordeiro inocente, imolado sobre a Cruz. Deus não se impõe ao homem. É oferta gratuita de infinito Amor. “Não sejamos insensíveis à bondade de Cristo”, lembra-nos Santo Inácio de Antioquia. No texto do Evangelho de Mateus, Jesus denuncia um culto de aparências, pede autenticidade nas relações com Deus e com os irmãos, condenando o ritualismo tradicional judaico: longas orações em público, gestos exteriores e vazios, exclusivamente para dar nas vistas. “Não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistas pelos homens”(Mt 6, 5). Jesus, o grande Adorador do Pai, aconselha a rezar ao Pai, no silêncio do quarto (cf. Mt 6, 6), que é também o segredo do próprio coração, onde Deus habita. A esmola, a oração e o jejum praticados discretamente com alegria, por amor a Deus e aos irmãos, agradam verdadeiramente a Deus. “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita” (Mt 6,3). O bem é humilde, tem o rosto lavado, quer dizer, não apresenta duplicidade nem ostentação de virtude. Emana o suave “perfume” da silenciosa presença de Deus, contagiando, sem ruído de palavras, quem se aproxima. É o testemunho alegre da verdadeira “metanóia”. A recompensa do Pai nasce desta jubilosa intimidade com Cristo – o Redentor do homem. Pilares da espiritualidade quaresmal A tradição bíblica e cristã assentaram a espiritualidade quaresmal em três pilares, que, com a força libertadora e santificadora do Espírito Santo, recriam o homem novo: a oração, o jejum e a esmola. A oração – É um encontro pessoal do homem com o Deus vivo, que nos convida à Sua intimidade. “A oração”, refere S. João Crisóstomo, “é a luz da alma e, por meio dela, unimo-nos ao Senhor num abraço inefável”. Num mundo, onde predominam o ruído e uma vida artificial, a experiência de silêncio e de deserto, ajudam-nos a purificar a memória, a descer à profundidade do ser, a pacificar-nos e a mergulhar no mistério vivo do Amor de Cristo e dos irmãos. O Jejum – Não se reduz apenas à abstenção de alimentos. É, em primeiro lugar, um elemento importante de domínio pessoal, abertura incondicional ao amor de Deus e realização da Sua vontade. Além de ser uma preciosa ajuda no combate contra o mal, é um meio eficaz para reatar a amizade com Deus e com os outros. A mensagem de Bento XVI, para esta Quaresma de 2009, está centrada no jejum, porque, refere o Papa, “o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos irmãos nossos”. E, porque o amor de Deus incarna em gestos humanos concretos, a Igreja, fiel a Deus e ao homem, não pode ficar indiferente perante as situações gritantes de pobreza, fome, indigência e sofrimento, de uma grande parte da família humana. O Santo Padre, querendo “manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção para com os irmãos, encoraja as paróquias e todas as outras comunidades a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando de igual modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola”. (Bento XVI, Mensagem para a Quaresma 2009). A esmola – “Quem dá esmola oferece a Deus um sacrifício de Louvor” (Sir 35, 4-5). A caridade é abertura do coração e solidariedade para quem está privado de alimentos, de meios económicos, de bens culturais e de progresso. Somos chamados a ser o Rosto da misericórdia de Cristo, junto dos irmãos mais necessitados, que solicitam a nossa ajuda de bens materiais e espirituais. Fazer uma caminhada quaresmal autêntica é, também, partilhar alegre e generosamente o nosso tempo: visitar os doentes, consolar os tristes, animar os que vacilam e testemunhar a esperança, onde o desamor, a solidão e a tristeza se instalaram. “Amar a Deus de todo o coração e o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12,33). Renúncia Quaresmal – Partilhar com amor e alegria Neste tempo de graça, o Senhor interpela-nos sobre a sinceridade da nossa vida de fé, atitudes e comportamentos. A Diocese do Funchal, num gesto de sincera comunhão, solidariedade e partilha fraterna com os mais carenciados, destina metade da renúncia quaresmal deste ano para apoiar um projecto de ajuda humanitária da Diocese de Lichinga (Moçambique), reservando a outra parte para a pastoral diocesana, nas diversas áreas e serviços de menores recursos. Conforme é costume, as ofertas desta renúncia dos fiéis serão recolhidas em todas as igrejas e capelas, nos ofertórios das Missas de Sábado e Domingo de Ramos, nos próximos dias 4 e 5 de Abril. Que Maria, Mãe da Esperança e causa da nossa Alegria, nos acompanhe e nos guie nesta caminhada quaresmal, em direcção à Páscoa. Ela, que é ícone da bondade do Pai e do acolhimento aos irmãos, nos introduza na Luz do Senhor Ressuscitado. Sé do Funchal, 25 de Fevereiro de 2009 + António Carrilho, Bispo do Funchal

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Agência ECCLESIA

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