Homilia da Vigília Pascal do Bispo de Lamego

A Eucaristia desta Vigília é o ápice do Tríduo Pascal e de todo o ano litúrgico. Engloba em si a densidade das celebrações anteriores: a última Ceia, a Paixão e Morte do Senhor e o mistério da Sua Ressurreição. Exultamos com o Senhor que passou da morte para a vida, “mistério e transcendência”, acontecimento a que ninguém assistiu, mas realidade que o sinal do sepulcro vazio e as aparições após a ressurreição comprovam irrefutavelmente. É o que celebramos aqui e agora e que a liturgia da luz tão sugestivamente evocou. Os sinos, emudecidos desde o Gloria da Ceia do Senhor, irromperam há instantes num repique festivo, como a emoldurar o Aleluia, palavra intraduzível, mas que condensa todos os sentimentos da alegria pascal. Vivemos a Vigília Pascal, Mãe de todas as vigílias, como S. Agostinho a denomina. Recordemos uma vez mais a doutrina do Catecismo da Igreja Católica: “Partindo do Tríduo Pascal, como da sua fonte de luz, o tempo novo da Ressurreição enche todo o ano litúrgico da sua claridade … A economia da salvação realiza-se no quadro do tempo, mas a partir da Páscoa de Jesus e da efusão do Espírito Santo, o fim da história é antecipado, pregustado, e o Reino de Deus entra no nosso tempo. É por isso que a Páscoa não é simplesmente uma festa entre as outras: é a «festa das festas», a «solenidade das solenidades» … O mistério da Ressurreição, em que Cristo aniquilou a morte, penetra no nosso velho tempo com a sua poderosa energia, até que tudo lhe seja submetido.” A Cruz que ontem adoramos bem erguida, troféu da nossa Redenção, como que se estilizou no círio luminoso, símbolo de “Cristo que se levanta glorioso do túmulo”, “coluna de fogo que dissipa as trevas do pecado, quebra as cadeias da morte”, e torna “a noite brilhante como o dia, e a escuridão clara como a luz”, cantou o Diácono no Precónio Pascal. É esta a luz que enche a Catedral e nos foi comunicada, significando a nossa participação na vida do Ressuscitado. Esta Vigília é igualmente a celebração da nossa vida de baptizados, mortos e sepultados em Cristo, e com Ele ressuscitados – lembrou-nos S. Paulo na leitura do Novo Testamento O nosso Deus é um Deus que ama, que tem um coração de carne, proclamava ontem à noite Bento XVI, no fim da Via-Sacra do Coliseu, e porque ama, comunica a vida, assim o revelou o tesouro maravilhoso da Palavra de Deus, hoje demoradamente proclamada, recordando os acontecimentos mais significativos da história da Salvação, misterioso desígnio do amor de Deus, amor-doação, em favor da humanidade. Voltamo-nos para Cristo Ressuscitado, para dizer-lhe, humildes como Pedro, mas igualmente comprometidos e cheios de entusiasmo: Senhor, Tu sabes que Te amo; ou para, como S. Paulo que O descobriu na estrada de Damasco, confessarmos a referência essencial e absoluta que Ele é para nós: Para mim viver é Cristo. Ele é a vida nova que recebemos no Baptismo. Essa vida faz renascer o José João Marques Cardoso, ainda criança, mas já consciente da importância do momento que vai viver. Vem a propósito lembrar de novo a afirmação de João Paulo II, na Exortação Apostólica Christifideles Laici: “Não é exagero dizer que toda a existência do fiel leigo tem por finalidade levá-lo a descobrir a radical novidade cristã que promana do Baptismo, sacramento da fé, a fim de poder viver as suas exigências segundo a vocação que recebeu de Deus”. Participar de modo responsável na Eucaristia desta Vigília é tomar consciência da nossa identidade cristã e assumir com generosidade uma posição inequívoca pelo Senhor. O Evangelho que acabámos de ouvir refere o comportamento das mulheres que ao romper da manhã acorreram ao sepulcro com os perfumes que tinham preparado e encontraram a pedra do sepulcro removida, mas não viram o corpo do Senhor. Primeiro perplexas e amedrontadas diante dos dois homens com vestidos resplandecentes, depois, ouvidas as suas palavras – Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui: ressuscitou – pressurosas e cheias de alegria, a correr, a comunicar aos onze a Boa Nova. Não obstante a desconfiança dos apóstolos que tomaram a novidade por um desvario, ninguém mais as demoverá da sua convicção. As mulheres, porque mais sensíveis ao amor, “são as primeiras junto à sepultura, são as primeiras a encontrá-la vazia”, e as escolhidas para iniciar a missão fundamental da Igreja: a evangelização, o anúncio de Cristo Ressuscitado. Não faltaram ao longo dos dois milénios de cristianismo e em todos os séculos, testemunhos de tantas e de tantos que continuaram o anúncio da Boa Nova, alguns até à exaustão das suas forças físicas ou até ao sacrifício da vida. Quero sublinhar mais uma vez a determinação de tantos cristãos da Igreja de Lamego, que no recente referendo sobre o aborto, defenderam corajosamente, sem ambiguidades, os valores da vida. É sempre a hora de definir serenamente as nossas convicções e assumi-las com humildade, mas desassombro. A Eucaristia torna presente – com toda a objectividade que a palavra «presente» comporta – o mistério que celebramos. É a Páscoa perpetuada. Nem todos os comportamentos são edificantes como os que acima enunciei. Por isso a Eucaristia e também a Páscoa são sempre tensão para a meta e desafio de missão, como Bento XVI ilustra bem na sua Exortação sobre a Eucaristia. Em ordem a um compromisso mais conscientemente assumido, porque não recordar os escândalos de todas as misérias, as mortes à fome e aos milhares, por indigência, ao lado de riquezas esbanjadas; a crueldade e a violência de todas as guerras e terrorismos; a ignomínia das mortes silenciosas, fruto dos crimes de aborto que infelizmente tantos portugueses quiseram legalizar; a corrupção económica, a exploração sexual; todos os atentados à dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, e à dignidade e estabilidade da família, criada por Deus e que por isso não pode estar à mercê de caprichos ou modas que são aberrações; todas as manifestações de degradação moral, despudoradamente e atrevidamente patenteadas, em nome duma liberdade que é libertinagem; as marginalizações de origem variada, os campos de morte como são tantas vezes os campos dos refugiados, sem um mínimo de condições; a habilidade fraudulenta de algumas empresas deixando no desemprego e no desespero honestos trabalhadores, ou a injustiça dos trabalhadores que levam à falência a fonte do trabalho, garantia duma vida equilibrada; a delapidação irresponsável das riquezas da terra, gerando desigualdades que bradam aos céus? Mas a tensão e a missão a que a Páscoa do Senhor e a Eucaristia nos desafiam, é estímulo a restaurar a justiça, a apressar a reconciliação, a construir a paz. Tal só é possível através dum abandonar das estruturas da morte e do pecado, dum caminho de conversão, dum renascer, da vida nova que a Páscoa e a Eucaristia nos oferecem. O Baptismo do José João a celebrar de imediato, vai dar-nos possibilidade de consciencializarmos o nosso também, de modo que a renovação das promessas baptismais, seja uma opção consciente, assumida, e generosa pela «medida alta» da vida cristã ordinária, como afirmou João Paulo II, na Carta programática deste milénio. Que a protecção da Mãe de Deus, nos dê rostos de ressuscitados e nos torne anunciadores comprometidos, mais pelas atitudes que pelas palavras, da Boa Notícia da Ressurreição. Para o José João os votos duma longa existência, sempre cheia da Graça de Deus que aqui vai receber. Para todos os queridos diocesanos, os votos duma Páscoa, santa e feliz.

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