Homilia da missa da Peregrinação Internacional dos Migrantes a Fátima

D. Arlindo Gomes Furtado

Caríssimos irmãos em Jesus Cristo,

O Senhor do céu e da terra, que cuida de todas os povos com carinho e os governa com justiça, nos convoca hoje, aqui, neste lugar sagrado, nós que proviemos de tantos lugares diferentes, para, juntos, como uma só família humana, elevarmos a Deus os louvores que Ele merece e deixarmos que Ele nos fale ao coração.

Neste dia singular, em que, no contexto da 39ª Semana Nacional de Migrações, celebramos com alegria a peregrinação dos Imigrantes e Refugiados ao Santuário de Fátima, aproveito a oportunidade para saudar a Comissão Episcopal da mobilidade humana, na pessoa de seu Presidente, o Sr. D. António Vitalino Dantas, Bispo de Beja, e agradecer-lhe a honra que me dá, convidando-me para participar nesta celebração. Saúdo fraternalmente a todos os que, tão dedicadamente, estiveram empenhados na preparação desta peregrinação, e, ainda de modo muito especial, a todos os peregrinos que ouviram o apelo e se disponibilizaram para vir participar nesta jornada de fé, que é ao mesmo tempo um impulso à esperança e expressão do amor de Cristo, derramado em nossos corações.

Caríssimos irmãos,

A pessoa humana é, por natureza, um ser em mutação, em contínuo processo de construção e, durante a sua vida na terra, nunca é um ser acabado. Tal mudança, a partir do seu ser interior é igualmente acompanhada de uma dinâmica de mobilidade no espaço e no tempo. A pessoa humana não precisa necessariamente nascer, crescer, viver e morrer no mesmo lugar. 

Deus criou o mundo para toda a humanidade e está inscrito em cada um de nós o desejo de nos transferirmos de um lugar para outro por múltiplas razões, quer de ordem pessoal, quer por vários outros motivos circunstanciais.

A mobilidade humana é um direito e um dever que assistem a cada pessoa e é um fenómeno que acompanha o ser humano desde os primórdios da história humana. Sim, o homem é um ser peregrino e Deus, Criador e Pai de todos, nos deu este planeta como espaço vital, para dele cuidarmos e dele nos servirmos.

Como nos diz o Papa Bento XVI na sua mensagem para o 97º dia Mundial de Migrantes e Refugiados, são várias as situações que provocam a mobilidade humana, nas suas diversas expressões internas ou internacionais, permanentes ou periódicas, económicas ou políticas, voluntárias ou forçadas.

Além disso, o grande fenómeno da globalização hoje em curso favorece essa mobilidade, graças às informações disponíveis, à consciência dos próprios direitos a uma vida melhor, à facilidade dos meios de transporte, à perceção do planeta como uma aldeia global, em que a interdependência e a mútua corresponsabilidade são traços característicos.

Todo esse conjunto de experiências e de perceções dos homens do nosso tempo levam-nos a ver a humanidade no seu todo como “uma só família humana”, que é o lema da mensagem do Santo Padre para este ano.

Todavia, para além dessas experiências do homem do nosso tempo, nós, os cristãos temos razões de outra ordem, não só para entendermos a humanidade como uma só família, mas ainda para nos empenharmos a fundo na construção dessa realidade, que somos chamados a viver no presente, no futuro, na eternidade.

Na verdade, nós sabemos pelas Sagradas Escrituras e acreditamos pela fé que Deus é o único Criador do género humano, é Pai de todos e faz de todos os povos, sem distinção de raças, línguas e culturas, uma só família em Cristo Jesus. A mesma Sagrada Escritura nos ensina que, em Cristo, nós constituímos um só corpo místico, sendo membros uns dos outros, cuja cabeça é o próprio Cristo.

Assim, para além de uma solidariedade natural que caracteriza o nível de um ser humano em relação ao seu semelhante, nós temos especiais motivações de ordem espiritual que nos fazem corresponsáveis uns pelos outros e nos levam a amar-nos verdadeiramente uns aos outros como irmãos, como o próprio Jesus faz para connosco e nos manda fazer em relação ao nosso próximo: “Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 13, 34).

Pela força desta convicção e pela solidez desse amor fraterno em Cristo Jesus, o emigrante por qualquer razão e em qualquer parte do mundo, apesar das dificuldades normais que o acompanham, especialmente nos períodos iniciais, no que diz respeito à adaptação à língua, a usos e costumes diferentes, à nova cultura, enfim, a um novo espaço relacional, deve sentir-se confiante e decididamente positivo na construção do processo da sua integração.

Do mesmo modo, aqueles que acolhem o emigrante na sua terra, devem ter a consciência do mundo global em que vivemos, do destino comum dos bens e de que, qualquer um, em qualquer momento, por um motivo qualquer, poderá igualmente ser emigrante em qualquer parte do mundo. E aqui, mais uma vez, se faz valer o exemplo e o ensinamento fundamental de Jesus Cristo, o Salvador do mundo: “… o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles; …” (Mt 7, 12). E ainda: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40b).

Todos nós sabemos pela história e pela experiência própria que, no encontro de pessoas de diversas proveniências, pelo cruzamento de povos de línguas e culturas diferentes, cria-se habitualmente uma interação dinâmica e enriquecedora, num dar e receber recíprocos, valorizando-se uns e outros. E aqui também se cumpre o ditado de que “ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar, nem ninguém é tão rico que não tenha nada a receber”.

E tal valorização mútua é certamente um fator de globalização positiva e de uma melhor compreensão do mundo atual.

Caríssimos irmãos em Cristo,

Neste dia especial da nossa peregrinação ao Santuário de Fátima, enquanto emigrantes nesta terra, chamada de Santa Maria, temos a iluminar-nos os textos sagrados que acabámos de ouvir proclamar.

O primeiro livro das Crónicas, que ouvimos na primeira leitura, apresenta-nos o rei David a convocar todo o povo de Israel em Jerusalém, sob a orientação dos filhos de Aarão e dos levitas, para a transladação da arca de Deus, também chamada arca da aliança, para um lugar nobre, especialmente preparado pelo rei.

Na Arca de Aliança guardavam-se as pedras da lei de Deus, lei que exprime a vontade de Deus e ensina ao povo que caminhos seguir na orientação da sua vida.

A arca da aliança, portadora das dez palavras de Deus e sinal da presença mesma de Deus no meio do seu povo, simboliza bem a verdadeira Arca da Aliança, portadora do Logos, o Verbo de Deus feito carne, Jesus Cristo, que, no seio da Virgem Santa Maria, assumiu a nossa humanidade, para salvar o mundo.

David, os sacerdotes, os levitas e todo o povo de Israel fazem a transladação da arca de Deus para Jerusalém para um lugar condigno e se alegram efusivamente.

Também nós, hoje, somos convidados a preparar no nosso coração um lugar apropriado para a Virgem Santa Mãe de Deus, a verdadeira arca de Deus e da sua aliança, celebrando com uma alegria transbordante o Deus que, em Maria se tornou o Emanuel, pela sua proximidade, pela sua presença, pelo seu amor.

É desse Logos, Deus humanado pela força do Espírito Santo no seio da Virgem Santa Maria que nos fala S. João na 2ª leitura, tirada da sua primeira carta, ensinando-nos que “quem confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus”.

Confessar a fé em Jesus, pelo anúncio da palavra e pelo testemunho da nossa vida, constitui hoje, caríssimos irmãos, um dos grandes desafios e uma das maiores tarefas de todo e qualquer cristão, em qualquer parte onde se encontre e em todas as circunstâncias.

Para além do anúncio da mensagem e da qualidade do nosso testemunho cristão, devemos ainda assumir a consciência da necessidade de o fazermos com ardor e grande alegria, através de expressões novas e adequadas aos homens do nosso tempo. Ontem, como hoje, como sempre, Jesus é o único nome dado aos homens, no qual todos seremos salvos. Confessá-lo é uma urgência prioritária.

No evangelho de hoje S. Lucas apresenta-nos Maria que se põe a caminho e se dirige à pressa para a montanha, a fim de servir a prima Isabel, que dela precisava. Cheia do Espírito Santo, Isabel, em sintonia com o Anjo da anunciação, que havia proclamado Maria “a cheia de graça”, também a reconhece como a “Bendita entre as mulheres” e “a Mãe do … Senhor”.

É pela fé que tem início uma nova relação da criatura com o seu criador, é através da fé que acolhemos a palavra de Deus e pomos em prática, tornando-nos assim bem-aventurados, como dizia Jesus: “Felizes antes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11, 27). É pela fé que Maria é feliz e se tornou a mãe de Deus feito homem, porque antes de ter concebido Jesus no seio, por obra do Espírito Santo, já trazia Deus no seu coração. É a mesma dinâmica da fé que faz de nós hoje, irmãos, irmãs e mães de Jesus Cristo (Mt 12,50) e, por isso seus mensageiros nesta sociedade sedenta do amor, da paz, da comunhão, de Deus.

Caríssimos irmãos em Jesus,

Neste dia singular da nossa peregrinação, enquanto emigrantes ou refugiados neste país que nos acolhe, a partir deste Santuário mariano, justamente chamado de “altar do mundo”, com o ardor e a alegria de David; com a intensidade do amor e o sentido da urgência do testemunho de Jesus Cristo, de S. João; com a exemplaridade da fé indefetível e espírito de consagração e de serviço de Nossa Senhora, elevemos o nosso olhar, o nosso coração e o nosso cântico ao Criador de todas as coisas e Pai de todos os homens,

– agradecendo de coração ao Senhor por tudo o que Ele tem feito por nós, por tudo o que nos tem ajudado a fazer, para que todo o ser humano, neste mundo, na terra de origem ou em qualquer país de acolhimento, possa encontrar sempre melhores condições de educação, de trabalho e de vida, num ambiente estável de paz e de respeito de direitos humanos;

– pedindo que a Igreja de Jesus Cristo, de que todos nós fazemos parte, se transforme cada vez mais em “… o sacramento, ou o sinal, e o instrumento de íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (Lumen Gentium, 1), prefigurando desde já a comunhão dos Santos, na pátria definitiva;

– suplicando que os Políticos, os Responsáveis pela coisa pública e os Agentes Económicos, Culturais, Sociais e de Comunicação assumam cabalmente o seu papel na sociedade, para que ninguém jamais se sinta forçado a emigrar por causa da perseguição, da guerra e da pobreza extrema;

– rogando para que os emigrantes se empenhem, com todas as forças, na preservação e melhoria da qualidade da sua fé em Cristo, testemunhando-a com esperança e alegria.  

Deste santuário, lançamos um apelo filial à Nossa Senhora, a Mãe da esperança, ela que, perante a perseguição do rei Herodes, emigrou com Jesus recém-nascido para o Egito, para salvar a vida do Filho, Salvador do mundo, para que ela acompanhe, guie, fortaleça e proteja cada um de vós aqui presente e cada emigrante em qualquer parte do mundo.

Assim, pela intercessão da Mãe do céu, Jesus seja sempre, para todos e para cada um, o caminho, a verdade e a vida; a luz que ilumina intensamente todos os que são acolhidos noutras terras, bem como aqueles que acolhem os que chegam de outras proveniências, sempre no espírito de que somos todos uma só família humana. Amen.

D. Arlindo Gomes Furtado, bispo de Santiago, Cabo Verde

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