Homilia preparada pelo Santo Padre Francisco para a Missa Crismal e proferida pelo Cardeal Domenico Calcagno

«O Alfa e o Ómega, aquele que é, que era e que há-de vir, o Todo-Poderoso» (Ap 1, 8) é Jesus. O mesmo Jesus que Lucas nos descreve na sinagoga de Nazaré, entre aqueles que o conheciam desde pequeno e que agora se maravilham com Ele. A revelação – “apocalipse” – oferece-se dentro dos limites do tempo e do espaço: a carne é o ponto de apoio que sustenta a esperança. A carne de Jesus e a nossa. O último livro da Bíblia narra essa esperança. E fá-lo de uma forma original, dissipando todos os medos apocalípticos com o sol do amor crucificado. Em Jesus, o livro da história abre-se e pode ser lido.
Também nós, sacerdotes, temos uma história: renovando as nossas promessas de Ordenação na Quinta-feira Santa, confessamos que só a podemos ler em Jesus de Nazaré. «Aquele que nos ama e nos purificou dos nossos pecados com o seu sangue» (Ap 1, 5) abre também o livro da nossa vida e ensina-nos a encontrar as passagens que revelam o seu sentido e missão. Quando nos deixamos instruir por Ele, o nosso ministério torna-se um ministério de esperança, porque em cada uma das nossas histórias Deus abre um jubileu, isto é, um tempo e um oásis de graça. Perguntemo-nos: estou a aprender a ler minha vida ou tenho medo de o fazer?
Quando o jubileu começa na nossa vida, todo um povo encontra descanso: não só uma vez a cada vinte e cinco anos – assim o espero! –, mas na proximidade quotidiana do padre ao seu povo, na qual se cumprem as profecias de justiça e paz. «Fez de nós um reino, sacerdotes para Deus e seu Pai» (Ap 1, 6): eis o povo de Deus. Este reino de sacerdotes não coincide com um clero. O “nós” que Jesus plasma é um povo cujos limites não se veem, e no qual caem muros e alfândegas. Aquele que diz «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5) rasgou o véu do templo e tem reservada para a humanidade uma cidade-jardim, a nova Jerusalém, que tem portas sempre abertas (cf. Ap 21, 25).
Assim, Jesus lê e nos ensina a ler o sacerdócio ministerial como puro serviço ao povo sacerdotal, o qual em breve habitará uma cidade que não precisa de templo.
Portanto, para nós sacerdotes, o ano jubilar representa um apelo específico a recomeçar sob o sinal da conversão: peregrinos de esperança, para sairmos do clericalismo e nos tornar arautos de esperança. Certamente, se Jesus é o Alfa e o Ómega da nossa vida, também nós podemos encontrar a oposição experimentada por Ele em Nazaré. O pastor que ama o seu povo não vive à procura de consenso e aprovação a qualquer custo. No entanto, a fidelidade do amor converte, os pobres reconhecem-no em primeira mão, mas, pouco a pouco, inquieta e atrai também os outros. «Olhai: […] Todos os olhos o verão, até mesmo os que o trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa dele. Sim. Amém!» (Ap 1, 7).
Caríssimos, estamos aqui reunidos para repetir e assumir como nosso este «Sim, Amém!». Trata-se da confissão de fé do povo de Deus: “Sim, é verdade, é firme como uma rocha!”. A paixão, morte e ressurreição de Jesus, que estamos prestes a reviver, são o terreno que sustenta firmemente a Igreja e, nela, o nosso ministério sacerdotal. E que terreno é este? Em que húmus podemos não só crescer, mas florescer? Para o compreendermos, temos de regressar a Nazaré, como tão acertadamente intuiu São Charles de Foucauld.
«Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler» (Lc 4, 16). Temos aqui mencionados pelo menos dois costumes: o de frequentar a sinagoga e o de ler. A nossa vida é mantida por bons hábitos. Eles até podem esmorecer, mas revelam onde está o nosso coração. O coração de Jesus é apaixonado pela Palavra de Deus: aos doze anos, já a compreendia, e agora, uma vez adulto, as Escrituras são a sua casa. Aqui está o terreno, o húmus vital que encontramos ao tornarmo-nos seus discípulos. «Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem» (Lc 4, 17). Jesus sabe o que está a procurar. O ritual da sinagoga permitia-lho: depois da leitura da Torah, cada rabino podia encontrar páginas proféticas para atualizar a mensagem. Mas aqui há algo mais: a página da sua vida. Lucas quer dizer o seguinte: entre tantas profecias, Jesus escolhe a que vai cumprir.
Queridos sacerdotes, todos nós temos uma Palavra a cumprir. Cada um de nós tem uma relação com a Palavra de Deus que vem de longe. Colocamo-la ao serviço de todos somente quando a Bíblia continua a ser a nossa primeira casa. Nela, cada um de nós tem páginas que lhe são mais caras, o que é bom e importante! Ajudemos também outros a encontrar as páginas das suas vidas: por exemplo, os noivos, quando escolhem as leituras do seu Matrimónio; ou aqueles que estão de luto e procuram passagens para confiar a pessoa falecida à misericórdia de Deus e às orações da comunidade.
Geralmente, há uma página vocacional no início do caminho de cada um de nós. Através dela, se a conservamos, Deus continua a chamar-nos para que o amor não se enfraqueça.
Todavia, é também importante para cada um de nós, e de uma forma especial, a página escolhida por Jesus. Nós seguimo-lo e, por isso mesmo, a sua missão diz-nos respeito e envolve-nos.
«Desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito:
“O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu
para anunciar a Boa-Nova aos pobres;
enviou-me a proclamar a libertação aos cativos
e, aos cegos, a recuperação da vista;
a mandar em liberdade os oprimidos,
a proclamar um ano favorável da parte do Senhor”.
Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se» (Lc 4, 17-20).
Nesse momento, todos os nossos olhos estão fixos n’Ele, que acaba de anunciar um jubileu e não o fez como quem fala de outrem. Ele disse: «o Espírito do Senhor está sobre mim» como quem conhece de qual Espírito está a falar. E, com efeito, acrescenta: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir». Isto é divino: que a Palavra se torne realidade. As ações agora falam, as palavras realizam-se. Isto é novo e potente. «Eu renovo todas as coisas». Não há graça, nem Messias, se as promessas permanecem promessas, se cá em baixo não se tornam realidade. Tudo se transforma.
É este o Espírito que invocamos sobre o nosso sacerdócio: fomos investidos dele e é precisamente o Espírito de Jesus que permanece o protagonista silencioso do nosso serviço. Quando as palavras se tornam realidade em nós, o povo sente o seu sopro. Os pobres – antes de todos os outros –, as crianças, os adolescentes, as mulheres, e também aqueles que na sua relação com a Igreja foram magoados, têm o “faro” do Espírito Santo: distinguem-no de outros espíritos mundanos, reconhecem-no na correspondência, em nós, entre anúncio e vida. Podemos tornar-nos uma profecia cumprida, e isso é bonito! O santo Crisma, que hoje consagramos, chancela este mistério transformador nas diferentes etapas da vida cristã. Mas atenção: nunca desanimar, porque é obra de Deus. Acreditar, sim! Acreditar que Deus não me falha! Deus nunca falha. Recordemos aquelas palavras da Ordenação: «Queira Deus consumar o bem que em ti começou». E assim faz.
É obra de Deus, não nossa: levar a boa nova aos pobres, a libertação aos prisioneiros, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos. Se Jesus encontrou esta passagem no livro, hoje continua a lê-la na biografia de cada um de nós. Antes de mais, porque, até ao último dia, é sempre Ele que nos evangeliza, que nos liberta das nossas prisões, que abre os nossos olhos, que nos alivia dos fardos que carregamos aos ombros. E depois porque, ao chamar-nos para a sua missão, inserindo-nos sacramentalmente na sua vida, Ele liberta também os outros através de nós. Por norma, sem que nos apercebamos disso. O nosso sacerdócio torna-se um ministério jubilar, como o d’Ele, mas sem tocar as trombetas: numa entrega que não é estridente, mas radical e gratuita. É o Reino de Deus, aquele de que falam as parábolas, eficaz e discreto como o fermento, silencioso como a semente. Quantas vezes os pequeninos o reconheceram em nós? E nós, somos capazes de dizer obrigado?
Somente Deus sabe como a messe é grande. Nós, os operários, experimentamos o trabalho e a alegria da colheita. Vivemos depois de Cristo, no tempo messiânico. Lancemos para longe o desespero! E, ao invés disso, restituam-se e redimam-se as dívidas; redistribuam-se as responsabilidades e os recursos: o povo de Deus espera por isso. Ele quer participar e, em virtude do Batismo, é um enorme povo sacerdotal. Os óleos que consagramos nesta solene celebração são para a sua consolação e alegria messiânica.
O campo é o mundo. A nossa casa comum tão ferida e a fraternidade humana tão negada, embora indelével, impelem-nos a fazer escolhas. A colheita de Deus é para todos: um campo vivo, no qual o que se semeou cresce cem vezes mais. Na nossa missão, sejamos animados pela alegria do Reino, que compensa todo o esforço. Realmente, todos os agricultores conhecem épocas em que não se vê germinar nada. Também elas não faltam nas nossas vidas. É Deus que faz crescer e que unge os seus servos com o óleo da alegria.
Queridos fiéis, povo da esperança, rezai hoje pela alegria dos sacerdotes. Que chegue até vós a libertação prometida pelas Escrituras e alimentada pelos Sacramentos. Muitos medos habitam em nós e terríveis injustiças nos rodeiam, mas um mundo novo já despontou. Deus amou tanto o mundo que nos deu o seu Filho, Jesus. Ele unge as nossas feridas e enxuga as nossas lágrimas. «Ele vem no meio das nuvens!» (Ap 1, 7). É d’Ele o reino e a glória para todo o sempre. Amém.