Em oração, tornemo-nos missão!
Compreenderemos muito bem, estimados irmãos e irmãs, o espanto de Salomão, que a primeira leitura resumia assim: “ – Mas será possível que Deus habite com os homens na terra?”. Como o rei antigo, bem sabemos que os céus são pequenos e toda a terra exígua para conterem o seu infindo Criador. E ainda menos qualquer casa que Lhe levantemos, mesmo tão grandiosa como o templo de Jerusalém, mesmo tão venerável como esta igreja catedral cuja dedicação comemoramos.
Sabemos até – e é bom que o saibamos deveras – como são perigosas e persistentes as materializações do culto, as localizações da devoção e as preferências dos lugares, quando se trata da nossa relação com o Deus vivo, sempre mais além de qualquer previsão nossa. Como sabemos igualmente que a tendência contrária, para abstrair e deslocalizar, treinando a mente para a não-representação absoluta, podendo traduzir em si mesma o respeito devido à alteridade divina, não pode resumir tudo quanto a revelação bíblica nos oferece, enquanto revelação de Deus e do homem, em mútuo relacionamento.
O próprio Salomão o pressentia, logo a seguir, dirigindo-se ao mesmo Deus que confessara tão ilocalizável: “Os vossos olhos estejam abertos, dia e noite, sobre esta casa, sobre este lugar do qual dissestes: ‘Aí estará o meu nome’”.
Mas era ainda dum lugar que se tratava… Seria destruído mais tarde e uma e outra vez reconstruído, como derrubadas, frustradas e apesar de tudo persistentes foram as expectativas dos seus devotos, de esclarecimento vário. Até que não ficasse pedra sobre pedra…
Símbolo duma relação viva e autêntica, como devia ser, entre o povo e Deus, o templo foi destruído pelo prévio definhamento dessa relação, da parte do povo, como tantos profetas alertaram, da parte de Deus. Deus é verdadeiramente ilimitável, mas a si mesmo se adequa ao espaço limitado de cada pessoa humana, pois é essa a verdade do amor. Tivesse permanecido a adoração do povo e as paredes do templo não seriam derrubadas. Porque é esta a qualidade dos símbolos: reúnem a quantidade do que há e vai haver; diluem-se quando a realidade se rarefaz, por ausência ou olvido.
É uma constatação fácil, mas também uma advertência séria. E tendo aqui connosco os nossos professores de moral e religião católicas, no início do novo ano escolar, não quero deixar de agradecer e motivar ainda mais o seu trabalho, como guardiães criativos da tradição simbólica do humanismo cristão, tão necessária à nossa auto-compreensão como sociedade e tão motivadora da nossa realização fraterna.
Caríssimos professores: chamai a atenção dos vossos alunos para os símbolos magníficos do Cristianismo vivo. Mas, sobretudo, ajudai-os a interpretar a sua linguagem e atraí-os à verdade que os preenche, em todas as artes que os construíram e em toda a caridade que traduzem. Foi por isso mesmo que, da parte de Deus, a misericórdia acabou em figura de homem: Deus absoluto num homem concreto.
Ouvimo-lo no Evangelho, como convém lembrar. Naquele diálogo entre Jesus e os seus discípulos, naquela afirmação de Pedro e na resposta do Mestre desvendado, renasceu o “templo”, transformado agora em Igreja de pedras vivas e congregadas pela mesma fé confessada. A Igreja nasce assim, com os que respondem com o apóstolo: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo!”. A Igreja cresce também, no alargamento desta certeza, que o próprio Pai infunde pelo esclarecimento do Espírito.
Assintamos nós, cada um de nós, do modo mais consciente e responsável. Mas a iniciativa é verdadeiramente divina: o Pai oferece-nos em Jesus uma presença salvífica e, pelo Espírito, faz-nos reconhecê-lo como tal. Neste reconhecimento de todos, tão bem significado na resposta de Pedro, unimo-nos como Igreja, para Deus e para o mundo. Para Deus em acção de graças, para o mundo em missão evangelizadora.
Caríssimos Vigários, coordenadores por excelência da vida eclesial das vossas vigararias; caríssimos professores, que em tantas escolas prolongais a pergunta de Jesus, como que proporcionando ao Espírito a ocasião para os vossos alunos responderem como Pedro; caríssimos irmãos e irmãs aqui presentes na inauguração dum novo ano pastoral: se nos preparamos todos para a Missão Diocesana, a desenvolver em 2010, tenhamos muito em conta que ela só poderá significar o que o trecho evangélico nos ensinou. E isto com duas condições imprescindíveis: será obra divina, iluminando as nossas inteligências e corações para o reconhecimento de Jesus como Cristo e salvador; requer que cada um de nós, pessoal e comunitariamente, deixe transparecer em si mesmo a presença de Jesus, interpelando pelo testemunho e interrogando por palavras e obras.
Sim, amados irmãs e irmãs, a iniciativa é divina, na acção conjunta das três Pessoas da Trindade Santíssima. A Igreja, também “desce do Céu”, como sinal e operação daquela última cidade em que nos realizaremos todos. Disse-o o vidente, com palavras de grande significado e sugestão: “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, bela como noiva adornada para o seu esposo”.
Mas nada disto nos dispensa, nem secundariza o esforço; muito pelo contrário, exige-nos uma grande compreensão e corresponsabilidade, por não ser obra primariamente nossa, mas essencialmente divina, que passa por cada um de nós, onde esteja e com os encargos que lhe impendem.
Assim nos preparamos imediatamente para a missão diocesana. E, uma vez assentes nas ideias, sejamos agora práticos na acção. Com alguns pontos enunciáveis:
1º) Cristãos singulares e comunidades cristãs, um por um e todos juntos, em paróquias e capelanias, congregações e institutos, irmandades e associações, movimentos e grupos; caríssimos professores e demais educadores, escola a escola, em todos os graus de ensino: antes de mais, rezai pela missão e rezai-vos em missão, assumindo as imprescindíveis palavras de Paulo: “Mas, quando aprouve a Deus […] revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como Evangelho entre os gentios” (Gl 1, 15-16).
Sim, amados irmãos e irmãs, a missão não se garante em nenhum voluntarismo nosso, mas na vontade de Deus, unicamente na sua disposição constante de chegar pelo corpo eclesial de Cristo a cada pessoa e situação, com palavras de salvação e paz, as mais concretas e situadas, caso a caso. Para isso trabalha o Espírito, revelando-nos Jesus como Cristo e revelando Cristo em nós, como oferta ao mundo.
Mas o que isto possa ser agora e em cada mês de 2010, apesar de tudo quanto programemos, só Deus essencialmente o sabe, revelando-o aos corações disponíveis que lhe repitam sem cessar: “Seja feita a vossa vontade!”. Assim aconteceu o Evangelho no mundo, pelo coração de Maria, símbolo vivíssimo de todas as missões. Deixai-me, a propósito, recordar o que me disse há anos um monge grego, precisamente no local em que João viu descer do céu a cidade santa: “Para nós, a evangelização acontece quando deixamos o Espírito transformar-nos em Evangelho vivo”.
Tentando ser ainda mais prático e quase comezinho, dir-vos-ei: incluí no vosso programa diário a oração pela missão, reproduzindo os sentimentos de Maria: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).
2º) Tomai em consideração atenta os tópicos de cada mês, já apresentados em Maio passado pelos nossos Secretariados Diocesanos e agora mais especificados no Calendário divulgado. Constituí em cada realidade eclesial um ou vários grupos de trabalho que, em ambiente de oração e criatividade, olhem a realidade envolvente e concretizem acções específicas de evangelização, para chegar um pouco mais longe e sempre mais a fundo, com o anúncio de Jesus Cristo, de Jesus como Cristo e salvador de todas as ocasiões e circunstâncias.
Estão a ser preparadas pelos Secretariados acções de referência, mês a mês, em ligação com o ritmo da nossa sociedade e cultura. Mas, pretendendo ser apenas isso – acções de referência –, visam sugerir e estimular e não substituir nem obviar o que só nos diversos locais e sectores pode e deve ser pensado e realizado. Por isso deixai-me insistir, em especial para os âmbitos vicariais e escolares, aqui tão presentes nesta feliz celebração: – Retomando o estilo evangélico, tão praticado aliás pela Acção Católica, local a local, sector a sector, vede, julgai e agi! Vede e avaliai as situações e as urgências; ajuizai com critério evangélico o que podeis e deveis fazer; seleccionai as acções correspondentes e levai-as por diante. – Como será revelador, mais para o fim da Missão, escutarmos os relatos do que foi acontecendo, nesta ou naquela paróquia, nesta ou naquela escola, nos mais diversos recantos do território, da sociedade e da cultura! Saberemos melhor o que fazer depois, na segunda década do século; divisaremos com mais nitidez, como vai “descendo” do Céu a cidade santa.
Retomemos, por fim, o começo destas considerações que a Palavra de Deus nos sugeriu, rumo à Missão 2010. A Igreja acontece e expande-se como oferta, pelo reconhecimento de Jesus como o Messias de todas as esperanças, o Cristo da resposta divina ao coração de todos. A Igreja, descobrindo-O assim pela iluminação do Espírito, vai-se descobrindo n’Ele, por uma relação viva que a transforma em seu corpo e manifestação ao mundo. É este o âmago da missão eclesial.
Certeiramente o indicou o papa João Paulo II, quando nos deixou há anos um “programa” para o novo milénio, cuja primeira década a nossa missão quer ultimar. Escrevia assim o grande pontífice, como decerto todos recordamos: “… os homens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes ‘falem’ de Cristo, mas também que de certa forma lho façam ‘ver’. E não é porventura a missão da Igreja reflectir a luz de Cristo em cada época da história, e por conseguinte fazer resplandecer o seu rosto também diante das gerações do novo milénio?” (Carta apostólica Novo millenio ineunte, nº 16). E ainda: “O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para nele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Este programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milénio” (ibidem, nº29).
Caríssimos irmãos e irmãs, aqui reunidos como corpo eclesial de Cristo, na dedicação constante da nossa catedral e diocese: – Temos programa, temos conteúdo e temos critério: demos-lhes “cor local” e oportuna, refulgurando em cada crente, comunidade e sector o rosto de Cristo, que quer ser “Deus connosco” em 2010 e sempre!
Porto, Solenidade da Dedicação da Sé, 9 de Setembro de 2009
+ Manuel Clemente, Bispo do Porto