Tese de doutoramento de Cátia Tuna, «Não sei se canto, não sei se rezo – ambivalências culturais e religiosas do fado entre os anos 1926 – 1945», procurou a «religiosidade e a interpretação que o fado faz de si próprio como oração»
Lisboa, 30 mar 2020 (Ecclesia) – Cátia Tuna, investigadora em história religiosa, afirma que o cruzamento da Teologia com outras áreas de saber, como no caso do fado, confere a esta ciência um carácter de humildade e “autoconhecimento” que a tornam “pertinente”.
“O diálogo com a Historia dá-lhe o dom de ter a realidade como plataforma primeira de conhecimento e isso é um instrumento de grande humildade: escutar o que a realidade tem para nos dizer, nas suas sombras e luzes, de violento e inexplicável, e ver, no encontro, que tantas vezes é um desencontro, e perceber o que pode e não dizer”, afirma a autora da tese «Não sei se canto, não sei se rezo – ambivalências culturais e religiosas do fado entre os anos 1926-1945».
Cátia Tuna anuncia “outros cruzamentos” com outras áreas, apesar de uma “institucionalização” com a filosofia: “houve outras épocas em que ligou a Teologia ao Direito, e tornou-se muito jurídica; há experiências que ligam a Teologia à Literatura, e há outros cruzamentos mais desconhecidos”.
“A Teologia ganha em auto perceber-se melhor, obriga-se a ser pertinente. E também a perceber que é carente de outros métodos”, indica.
Sob orientação do professor António Matos Ferreira, a tese de doutoramento, realizada no âmbito da História, “com um objeto com uma vertente teológica”, procurou a “religiosidade e a interpretação que o fado faz de si próprio como oração”.
O fado apresentava-se como algo estritamente profano. As primeiras autoenunciações do fado, como algo religioso, tinham um tom sarcástico: ouvia-se «até Deus gosta de fado», colocavam-se santos a tocar…”
Para se legitimar cultural e socialmente, explica a investigadora, “começou a dizer-se como oração e também performativamente começou a elaborar-se como oração, até da parte cénica, a impor-se como uma música válida para aceder ao sagrado”, recorda.
Cátia Tuna assinala uma “dialética” entre “tradição e modernidade” presente no fado mas também na Igreja.
“Não é tanto uma tradição, o que vemos é uma relação de reciprocidade: é algo que é entregue, devolvido e entregue novamente. O que encontramos são reformulações, que na realidade tem uma matriz de há muitos anos”, sublinha.
A investigação teve início em 2013 e Cátia Tuna refere a dificuldade de “domar o tema”, uma vez que, acredita, “poder-se-ia fazer várias teses sobre o assunto”.
“A primeira grande necessidade era domar o tema. Podia ser um caldeirão de coisas ou não ser nada. A minha dificuldade era circunscrever o objeto”, explica.
O quadro temporal estudado, 1926-1945, compreende o período da instituição da ditadura militar em Portugal e do Estado Novo, que durou até 1974.
“Esta é uma época de muitas primeiras vezes, as primeiras casas de fado, as primeiras vedetas, porque o fado profissionalizou-se nesta altura. Antes deste período era uma prática boémia, masculina e urbana, em especial lisboeta. Depois os desenvolvimentos radiofónicos ajudaram ao seu desenvolvimento. A indústria discográfica fica mais robusta”, explica.
Sobre a ligação desta musicalidade ao Estado Novo, Cátia Tuna é cautelosa.
“O fado saiu de uma clandestinidade, conectada com praticas de subversão social e passa para um patamar completamente diferente, de moralização, certinha, acantonada a expetativas do Estado Novo. Houve um processo de ambiguidade, entre o Estado Novo e o fado, que na época em que eu estudei apenas começa”, indica.
A investigadora refere ainda a presença de uma “visão antideterminista de Deus, e um grande elogio da liberdade e vontade humana”, no catolicismo.
“A sociedade portuguesa tão católica produziu um substrato cultural tão determinista como é o fado, parece que houve um escape ou grande desencontro entre uma resposta que não houve e uma pergunta que não encontrou resposta”, aponta.
LS