Vida e obra do escritor russo mostram um tempo e uma sociedade que viveram as consequências do regime soviético e «esqueceu Deus»
Lisboa, 20 mar 2021 (Ecclesia) – O professor de Filosofia Política Mendo Castro Henriques indica que a vida do escritor russo Alexander Solzhenitsyn perseguiu a tarefa de descrever a Revolução Russa, o seu efeito num povo e como ultrapassar um regime de repressão.
“A sua vida de 80 anos acompanha o arco desde o nascimento da Revolução Russa, em 1917, até a realidade atual do novo regime russo pós soviético. A sua educação, formação, as cidades que marcaram a sua vida, conduziram-nos a contactar com a alma russa, com o enigma de um povo que vive num vasto território, tem personalidades ricas, mas pressões de tiranos tão fortes, que tem de fazer assiduamente um exame de consciência e uma mudança de regime”, explica à Agência ECCLESIA o professor da Universidade Católica Portuguesa.
A última conversa «Gente de Pouca fé?» incide sobre o escritor russo, nascido em 1918 e falecido em 2008, que durante oito anos esteve preso nos Gulag, campos de trabalhos forçados para criminosos e presos políticos, e que a partir da sua experiência e de outros prisioneiros, escreveu sobre os perigos do regime da antiga União Soviética.
“Boa parte da sua obra é uma anamnésia, ou seja, um parar de esquecer, um recordar o que cala fundo na consciência das pessoas. Desde muito cedo, Alexander Solzhenitsyn concebeu a sua missão na escrita”, indica.
Oito anos num dos campos de trabalho forçados e em condições muito duras, “falta de alimentação, higiene, temperaturas frígidas, e o sofrimento dos seus camaradas de prisão que morriam pelas condições ou eram assassinados”, levaram o escritor russo a escrever uma das suas “mais conhecidas obras, o «Arquipélago Gulag», porque a União Soviética tinha mais de 100 locais onde acontecia a repressão”.
Alexander Solzhenitsyn, que ganhou o Nobel da Literatura em 1970 e Prémio Templeton em 1983, um prémio similar ao Nobel para a religião que distingue a dimensão religiosa na vida, foi educado nos princípios marxistas “que não eram debatidos e os quais sustentou até aos 30 anos”, até que regressou à experiência de fé, que o acompanhou na infância, passados 20 anos de ausência de prática cristã.
“A dor retirou a rigidez que tinha aprendido com o Marxismo-Leninismo e fez sobressair a sua experiência que derivava da fé. Pela sua obra mostrou, e contagiou outros autores, como Jean Paul Sartre e Heinrich Boll, que a ideia do comunismo soviético estava acabado”, evidencia Mendo Castro Henriques.
Exilado da Rússia a partir de 1974, Alexander Solzhenitsyn retirou-se para Vermont para escrever, nos EUA, onde encontrou “condições climáticas semelhantes às da Rússia” e, “cm base em notas que cria, que ele concebe a sua mais importante, «A Roda Vermelha»”.
“Em Portugal está publicado apenas parte mas é a historia dos acontecimentos que preparam a Revolução Russa. É uma história sem um herói, de muitas vozes que falam entre si, da forma como se envolvem, que nos leva a perceber a queda dos czares”, dá conta.
Em 1983, no seu discurso de aceitação do prémio Templeton, Alexander Solzhenitsyn, lamentou a “ausência de Deus” no destino da Rússia.
“No discurso ele questiona «Qual a intensidade e autenticidade da fé nos russos?» O que ele nota é que na decadência da sociedade czarista, embora houvesse boas medidas acompanhadas de más medidas, o que tinha saído da Rússia era a confiança, o acompanhamento e a resposta humana às interpelações divinas”, recorda.
O escritor russo, se foi crítico do regime soviético pela repressão que sustentou, condenava também o ocidente porque “vivendo em liberdade, desperdiçavam-na”, recorda o docente de Filosofia Política.
Depois de 20 anos de ausência da experiência religiosa Alexander Solzhenitsyn recorda “as experiências de infância – o assistir às invasões nas igrejas, ter compaixão pelas filas de mulheres que queriam dar comida e visitar aos homens presos políticos, o estremecimento da sua avó perante as ícones”, e entende que “não pode haver uma medida humana absoluta”.
«Gente de pouca fé?» foi um espaço de conversa com o professor Mendo Castro Henriques, a cada Domingo da Quaresma, onde os percursos de Peter Benenson, Angela Merkel, Robert Bolt, Rachel Carson e Barbara Ward foram revisitados, colocando em análise os gestos anónimos dos protagonistas que evidenciando ações vincadas por valores cristãos mantinham um discurso discreto sobre as suas convicções mais íntimas.
LS