Adriano Moreira analisa o pontificado do Papa a partir dos gestos e das mensagens do primeiro mês do cardeal Bergoglio no Vaticano
Agência Ecclesia – Pelo que aconteceu ao longo do primeiro mês, pelas surpresas que foi introduzindo, o que se pode esperar do pontificado do Papa Francisco?
Adriano Moreira – Fiquei surpreendido, sim. Mas ficaria muito mais surpreendido se não tivesse sido eleito para Papa uma pessoa com a formação, a experiência e o perfil do cardeal Bergoglio. Porque estamos a viver uma época de completo desprestígio e decadência do Ocidente.
Uma das razões, que tem sido pouco referidas, diz respeito à alteração da ordem em que o Ocidente vivia pelas duas Guerras Mundiais (foram chamadas mundiais, pelos seus efeitos, mas de facto foram guerras civis). Com isso, mudou a regência imperial dos ocidentais, originando um novo relacionamento entre todas áreas culturais marcado pelo facto de, pela primeira vez na história da humanidade, todas as áreas falam em liberdade, incluindo a liberdade política.
Esta circunstância tem tido reflexos muito severos em relação ao Ocidente, designadamente a Europa, a que é preciso somarmos os erros dos governos (terem mais fé nas estatísticas do que nos valores, por exemplo), provocando uma deslocação da fronteira da pobreza, que ainda no século passado estava ao Sul do Saara, para o Norte do Mediterrâneo. Parece que está a renascer a fronteira do limes romano: somos países do Império atingidos pela fronteira da pobreza.
Por outro lado, a própria organização legal do projeto europeu, na sua maioria parte devida à democracia cristã que praticamente desapareceu da organização política europeia, não está a ser observada em muitos aspetos. São poderes de facto que estão a intervir. Um exemplo é o G20 (que mais me parece G2 mais 18) que não tem nenhuma cobertura legal. Também não sabemos onde estão os centros que determinam a estrutura financeira, com uma subordinação à ganância que era punida pelos códigos penais dos paíes ocidentais…
A eleição deste Papa recai sobre um homem que tem a experiência dos países que já eram pobres, estavam na área da pobreza.
AE – Capaz, por isso, de enfrentar os desafios com que a Europa se vê atingida?
AM – Penso que sim.
É um dos únicos que, com a experiência da sua vida e a intimidade que, por causa disso, tem com a regência do Vaticano é certamente um homem muito habilitado a julgar esta situação do mundo.
AE – Também por ser da América Latina?
AM – Também por isso.
O continente americano, sobretudo a América do Sul, passou por experiências terríveis ao longo da sua história, nomeadamente da fé cristã que inquietaram o Vaticano. Por exemplo a Teologia da Libertação. Recordo Camilo Torres, que não se sabe se morreu a combater se abençoar, com os motivos que tornou públicos em relação ao seu país. Embora padre, como sempre se manteve, concluiu que a estrutura injusta do seu país só poderia ser modificada pela violência. Tudo são experiências que tiveram expressão em mais do que um purpurado da América Latina.
AE – Também neste Cardeal Bergoglio? A sua formação está assente na Teologia da Libertação?
AM – Eu não digo que esteja baseada, mas certamente não desconhece os factos, a importância que teve.
Eu conheci o padre Boff, da Universidade de Petrópolis. Pareceu-me sempre um homem sincero, como o irmão. As fórmulas que adotou, que inquietaram o próprio Papa João Paulo II, podem ter sido imprudentes, mas a sua autenticidade nunca a pus em dúvida. Como a do Camilo Torres. E os cristãos estão sempre preparados para isso: apesar da autenticidade, caem em erros. E isso pode ter acontecido.
AE – Que alcance terá a escolha do nome, Francisco?
AM – Eu vi a notícia com emoção. São Francisco é um santo de grande devoção (lembro-me sempre de que dançou diante do Papa quando aprovou os estatutos da ordem, revelando consciência do mundo difícil e pobre em que vivia mas sempre com alegria em relação ao futuro). Tenho reparado que ele está a dar sinais extremamente importantes.
AE – Estes gestos não serão aparentes…
Não considero, pelo contrário.
Para sermos ajudados a raciocinar sobre a circunstância que estamos a viver, temos de distinguir no cristianismo Cristo da Fé (ou se acredita ou não), o Cristo da História (onde é possível a discussão e a controvérsia honesta) e a autoridade do Vaticano. E neste momento, não existe como deveria harmonia entre estes. O Vaticano está a ser objeto de ataques fundamentados, que é preciso enfrentar com coragem. Porque faz parte da própria doutrina: é preciso aceitar a queda e não perder a esperança nem a vontade de reparar os danos causados.
O Papa tem mostrado uma total compreensão pelas circunstâncias de pobreza que os povos estão a enfrentar; tem uma compreensão completa de que é absolutamente necessária a autenticidade, a identificação entre a doutrina e a ação, o que implica uma coragem enorme para retificar erros, aceitá-los e combatê-los para repor essa autenticidade.
Por outro lado, a simplicidade com que Francisco, neste momento, põe em evidência que a qualidade de Papa está relacionada com o facto de ser bispo de Roma, é uma das demostrações de apego aos princípios, à autenticidade e à simplicidade que acreditam a voz.
Uma das coisas que faz falta ao Ocidente, neste momento, são lideranças autênticas, são as “vozes encantatórias”, que fazem semear a esperança.
AE – Acha por isso que o Papa Francisco é capaz de provocar as mudanças que são necessárias?
AM – Eu acredito no poder da palavra que este Papa tem. E quando digo a palavra incluo o gesto, a atitude pessoal, o comportamento. Tudo faz parte do poder da palavra. E até agora tenho visto que se mantem fiel.
O bispo que veio do fim do mundo assumiu-se em primeiro lugar como bispo de Roma. E age como tal.
AE – As reformas que têm de acontecer na Cúria Romana impõem-se por causa de relatórios sobre escândalos, por que existem suspeitas sobre o banco do Vaticano?
AM – Para fazer comentários sobre isso é preciso conhecer o relatório. E nós não o conhecemos.
AE – Mas são esses relatórios que devem motivar as reformas ou a procura do espírito de autenticidade?
AM – Os relatórios devem ser tão exigentes quanto a autenticidade. O pouco que sabemos (e é preciso não ceder às facilidades do “comentarismo”, pelo menos entre os que pertencem à Igreja Católica) e pela decisão do Papa Emérito, a exigência é tremenda. Só isso justifica o ato de humildade que é renúncia à responsabilidade e qualidade de Papa. E dizendo porquê: não se sente com forças para enfrentar o desafio.
Imagino, portanto, que o desafio deve ser enorme, embora não o possa medir. Sei que a referência, em palavras breves, é a autenticidade.
AE – O Vaticano precisa de ter um banco?
AM – Acho que não. Cristo expulsou os vendilhões do templo, não os levou para lá.
Se há alguma coisa preocupante neste momento é o desconhecimento dos centros financeiros, além da crise nos centros políticos. E o envolvimento do Vaticano, o tal terceiro elemento que referi, nestes sistemas não é o mais indicado. E é bem provável que venham decisões do Papa Francisco sobre esse setor. Mas é melhor não fazer futurismo…
AE – Mas será necessário uma nova atitude diante da administração dos bens?
AM – Pelas notícias que temos, o sistema de gestão, o tal terceiro ponto que é o Vaticano, vai exigir uma grande intervenção reformadora e uma grande autoridade pessoal.
AE – E este Papa tem-na?
AM – Tem que ganhá-la! Porque há uma coisa que dificilmente os governos aceitam: a diferença entre o poder que a lei confere e autoridade que se ganha. A legitimidade do exercício é aquela que domina qualquer intervenção, não a adquirida pelo cargo. A legitimidade do exercício é imediatamente a medida da intervenção. Não é, por isso, tanto o poder que interessa, mas a autoridade.
A rapidez da eleição, o reconhecimento da crise europeia do ponto de vista dos valores religiosos e o entendimento de que a pobreza é hoje o grande desafio dão força. E assumindo como prioridade o regresso à autenticidade, o Papa vai ganhar uma autoridade extraordinária!
AE – O que se pode esperar deste Papa como chefe de Estado, que também é?
AM – Há muita discussão sobre se a qualidade de chefe de Estado interessa manter, na Igreja. Esta avaliação, no entanto, também depende do seu exercício: quando bem utilizada, a condição de ser chefe de Estado tem dado vantagens à propagação da fé. E neste momento é preciso uma nova evangelização.
AE – Uma análise, agora, a algumas afirmações que o Papa Francisco foi fazendo com insistência. Desde logo o desafio de que a Igreja deixe de ser autorreferente, avançando para as periferias, não só geográficas mas sobretudo existenciais.
AM – Tem absoluta razão! É evidente que, neste momento, a Igreja Católica tende para minoritária na Europa.
Verificamos, designadamente no Portugal católico, a distinção entre o crente que pratica e os que declaram que são não praticantes, mantendo no entanto a referência.
É cada vez mais crescente o número de pessoas que negam a referência, numa Europa responsável pela evangelização mundial. Torna-se, assim, muito evidente que o Cristianismo é um elemento da esperança dos pobres.
AE – Essa também uma preocupação que o Papa tem afirmado…
AM – Com um colega a dizer-lhe “não te esqueças dos pobres”. Direi que foi lembrança, mas talvez desnecessária…
Penso que esse espírito, de atenção aos pobres e de evangelização, tem de chegar a todos os países. Em Portugal, nomeadamente, já apareceu um documento, um livro do D. Manuel Clemente “Para a Nova Evangelização”, que é necessário ler nesta altura. Há outras intervenções de vários bispos, mas documento sistematizado, tentando definir a situação portuguesa, encontra-se neste livro.
AE – Uma outra prioridade, afirmada nos dias destes pontificado, é a pastoral e não a burocracia. Que mensagem é essa para quem está no governo da Igreja?
AM – É o poder da palavra! Não são as inquietações financeiras que devem preocupar o Papa. Tudo isso faz parte do regresso à autenticidade. Ele próprio, pela simplicidade de vida que está a adotar, diz como entende o relacionamento do poder da palavra com a burocracia, incluindo a financeira.
AE – Outra preocupação, desde a primeira hora, é o cuidado pela criação. Decorre também do nome que assumiu para o seu pontificado?
AM – Isso é indiscutível. Olhamos com à-vontade para esta “nave” em que vivemos e organizarmos a utilização dos recursos não renováveis, não reparando que quando descobrirmos uma nova energia de recursos não renováveis só estamos a adiantar para mais longe um desastre porque o critério continua a ser o mesmo. Deveríamos ter mais atenção à criação, à casa comum de todos os homens que é a Terra. Isso é urgente e necessário porque o primeiro objetivo dos povos que pela primeira vez falam com liberdade na comunidade internacional é ter um desenvolvimento igual às potências dominantes. E, portanto, com os mesmos erros.
A doutrinação que diz respeito à casa comum, que é a terra de todos os homens, implica um assento muito severo entre as áreas culturais. E portanto entre as religiões.
Muitas vezes medito naquela certeza de que se não houver paz entre as religiões não haverá paz no mundo. Isso implica a busca do paradigma comum, que também já deu problemas hierárquicos à Igreja, mas que é indispensável.
AE – Como analisa o mediatismo deste pontificado?
AM – Ainda é cedo para fazermos um juízo sobre isso.
AE – Em todo o caso, este Papa cria empatia com os meios de comunicação social.
AM – Sim. Faz parte da capacidade de ganhar a autoridade. Mas ele precisa – e vai ter – cuidado com a manutenção dessa imagem de simplicidade para que a imagem criada pelos meios de comunicação social não o venha a prejudicar. Isso aconteceu com os Estados da atualidade.
A invenção do Estado espetáculo afastou o governo dos povos. E hoje vemos as sociedades civis a desconsiderarem completamente a autoridade que deveriam reconhecer nos governos.
Uma boa relação do Papa com os meios de comunicação é absolutamente fundamental para que a imagem corresponda «exatissimamente» à autenticidade que ele introduz no exercício do encargo que assumiu.
AE – As muitas diferenças que este Papa introduz podem induzir tendências cismáticas na Igreja?
AM – O consequencialismo é sempre imprevisível e, neste momento, impossível. Juízos de probabilidade são uma audácia e os de possibilidade devem manter no nosso espírito a dúvida se não virá a acontecer outra coisa.
A única solução é manter a autenticidade. Porque o consequencialismo é difícil de prever. E o Papa não vai dispensar a autenticidade…
PR