Festas e romarias… ou a religião do povo à luz do dia!

Padre Amaro Gonçalo, pároco de Nossa Senhora da Hora, Matosinhos

A avaliação do fenómeno da chamada religiosidade popular está hoje comprometida pelas descobertas no domínio das ciências humanas, como a antropologia cultural, a sociologia da religião e a pastoral. Poucos são os que, dentro ou fora da Igreja, se atrevem a uma depreciação do fenómeno, por quanto ele parece ser a grande referência cultural e a amostra mais sensível da alma de um povo. A religiosidade popular constitui, de facto, um dos acessos mais diretos e penetrantes do coração e da alma de um povo.

Bem sabemos que o fenómeno da religiosidade popular tem vindo a ser mais bem tratado, inclusive pelo poder civil instituído, movido mais por uma espécie de moda «retro» do que por afinado juízo cultural. Recuperam-se as tradições, as festas e as romarias, não porque se tenha em vista devolver à alma do povo o que o racional lhe retirou, mas como simples aposta num turismo religioso, muitas vezes de mera imitação ou reprodução ou ressuscitação históricas. O interesse dos políticos e especialistas das ciências sociais é, em muitos casos, puramente arqueológico, sem nenhuma preocupação por atualizar os significados dessas experiências religiosas, em vista de uma eficaz ação evangelizadora. Bem sabemos que não lhes cabe essa preocupação. Mas, muitas vezes, são eles, os autarcas, os mais apostados na promoção da religiosidade popular, mesmo que determinadas manifestações já não tenham correspondência alguma com a realidade religiosa e sociológica locais. Neste brevíssimo apontamento, consideremos sumariamente os valores antropológicos, culturais e pastorais da festa, da romaria e do santuário, que aprendi e apreendi sobretudo na vivência da romaria a São Gonçalo e agora das voltas e voltas, à fonte da Sete Bicas, na jovem cidade da Senhora da Hora.

 

1. A festa

Religião e festa sempre estiveram muito unidas. A festa é a decomposição da racionalidade estabelecida. O excesso no comer e no beber, no cantar e dançar, etc., estabelece a rutura com o socialmente estabelecido, com as pautas quotidianas do comportamento coletivo. Em muitas zonas rurais, os dias de festa são os únicos em que cada indivíduo é ele mesmo. O indivíduo predomina sobre a coletividade. A festa é também um importante agente de socialização, de inclusão social e cultural. O enorme capital simbólico que possuem as celebrações religiosas converte-as num meio tremendamente eficaz para a transmissão de ideias e valores. Nas grandes cidades, e nos meios urbanos, a questão põe-se de maneira diversa, pois a festa já não é o único momento, em que o indivíduo rompe com as normas sociais do grupo nem sente a necessidade do desvio em relação a um todo social que sobre ele exercesse qualquer tipo de pressão. Mas, na cidade, a festa representará, pelo menos, a libertação da rotina laboral, a descompressão do ritmo rígido e violento dos dias feriais e de algum modo um ponto de salvaguarda da identidade primitiva do povo originário daquela terra hoje de quase ninguém. É curioso, como mesmo num meio urbano, emergem vontades bem determinadas em levantar uma festa, que, de algum modo, abra espaço a um “pequeno resto”, que ainda resiste, na cidade poluída, a perder a sua alma.

 

2. A romaria

A Romaria é uma «peregrinação de curta distância. «Ir à Romaria» parece ser o gesto de quem vira a página do dia, para encontrar na contra página a solução do problema ou a decifração de um escrito cheio de incongruências. «Ir à Romaria» manifesta a abertura ao não-lógico, ao não-compreensível, ao destino secreto que enreda a vida.

 

3.O Santuário e a promessa

No imaginário dos romeiros, o santuário, por mais pequeno que seja, funciona como o espaço de liberdade, já que, em primeiro lugar, ele obriga à fuga da vida de todos os dias (não se vai lá todos os dias). Ele está assim investido de uma força de libertação da rotina. Para o Povo, o santuário é procurado como espaço do «outro-possível», mais-além das lógicas estreitas e do raciocínio do dia a dia. Lá intervém o Outro Invisível. Ali Deus entra em diálogo com a corte dos «mediadores»; ali Deus dispensa os auxílios e graças. O Santuário é assim o lugar da atualização do Invisível, porquanto facilita uma abertura maior ao espiritual, demarcando o crente da profanidade do mundo, pela diferença típica do seu espaço sacro.

 

Algumas perspetivas pastorais

Daquilo que, à pressa, fomos dizendo, claramente se nos afigura que, no fundo de todas as formas religiosas, primitivas ou modernas, há sempre um substrato de religiosidade primordial e originária, que está na radical condição da existência humana e nos próprios alicerces da vida coletiva da humanidade. Não são de ignorar, em muitos sentimentos e expressões da religiosidade popular, pequenas “sementes do verbo”, que é preciso acolher, desenvolver e fazer frutificar, numa justa relação com Deus e com os outros. Pelo que não é sensato, e fere mesmo o princípio da encarnação, querer ignorar ou abolir os revestimentos culturais de uma fé, que pode até não ser coerente com tudo o que professamos, mas que, de algum modo, abre uma fenda, oferece um terreno de “preparação evangélica”, para a sementeira do Reino. Mais do que desprezar o fenómeno é preciso conhecê-lo, valorizá-lo, evangelizá-lo.

A avaliação pastoral do fenómeno não pode nem deve fazer tábua rasa desta dimensão antropológica da festa, cedendo a uma racionalismo primário e inculto ou a uma visão teológica que nem sequer é teologal, mas que precisa sobretudo de o compreender melhor e de o preencher daquele sentido vivo e profundo, que o Evangelho dá à Vida, para a completar e plenificar de alegria. Frente às leituras do catolicismo popular, como expressões meramente culturais, é preciso sublinhar a sua dimensão religiosa e eclesial. Mas também aqui não é possível nem convém separar o religioso e o cultural: o primeiro ficaria vazio, o segundo desencarnado. A religiosidade popular é, realmente, um dos caminhos possíveis para a santificação pessoal dos fiéis cristãos e para a evangelização da nossa sociedade, desde que se cumpram, certas exigências, entre as quais destacaria:

– Fazer da festa religiosa e popular um ponto de unidade inclusiva de uma comunidade inteira, promovendo as múltiplas expressões culturais, ali associadas ao culto do padroeiro;

– Empenhar-se na evangelização, propondo ao povo, a atualidade e a beleza daquela santidade, de que o padroeiro é testemunha eloquente;

– Dar a conhecer a vida dos santos patronos, através de novas narrativas, de novas linguagens e de novos meios, como o conto, o filme, o teatro etc;

– Envolver a Catequese e os grupos de jovens, na preparação e na celebração da Festa, de modo a iniciar as novas gerações, na comunhão com uma tradição viva, depurando-a de eventuais expressões, desencontradas da vivência cristã;

– Aliar a abolição de um mau costume ou de um costume pagão, um rito de substituição, que possa traduzir fiel e adequadamente, em perspetiva cristã, o sentimento religioso que lhe está associado e o valor evangélico que importa suscitar; este processo implica compreender, proporcionar, libertar, educar na fé e no amor, sem pressas iconoclastas de má memória;

– A peregrinação, a Eucaristia ou a procissão sejam momentos, em que torne possível o céu tocar a terra, Deus entrar nos corações, abrindo, na beleza da liturgia, uma fenda de acesso ao mistério celebrado.

– Tornar claro o destino das ofertas dos fiéis e a sua aplicação, sobretudo, no âmbito do culto e da caridade, para que se respeite a intencionalidade dos oferentes e se responda às necessidades do Povo de Deus.

Tais recursos pastorais, podem robustecer e purificar alguns aspetos da religiosidade popular, no fundo da qual subjaz um autêntico tesouro de fé. Há que apreender o fundo mais rico destas formas e dar-lhes o conteúdo mais doutrinal e espiritual que se lhes ajuste, numa linguagem verdadeira e atraente, se queremos que a Igreja seja «popular», o mesmo é dizer, universal, e não uma seita ou um clube de pensadores.

Padre Amaro Gonçalo, pároco de Nossa Senhora da Hora, Diocese do Porto 

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