Festa do Senhor Santo Cristo nos Açores

Comentário do Bispo de Angra Bem sei. As festas em honra do Senhor Santo Cristo não são só religiosas. Como toda e qualquer festa, entre nós, têm uma dimensão religiosa e outra profana. Há arraial e comércio, celebrações litúrgicas e manifestações culturais. Mas não são mero folclore religioso, para turista ver. Desde logo, porque envolvem toda a sociedade. Além disso, são uma expressão válida de vivência cristã. Não é só uma questão de tradição. Permanece a tradição, porque é significativa para a vida em sociedade e para a expressão popular da fé. E quando digo «popular» não estou a contrapor o termo a «oficial e institucional», porquanto esta forma de piedade tem claro apoio hierárquico. Também não me refiro à massa do povo, na acepção marxista de «classe dominada», pois a devoção ao Senhor Santo Cristo abrange pessoas de todas as condições sociais. Nem tão pouco, isso é sinónimo de fé menos esclarecida. Tem na sua base a intuição fundamental do mistério cristão: a Incarnação de Deus em Jesus Cristo. Por isso, a Sua veneração, sob a imagem do «Ecce Homo», não é uma devoção qualquer, entre tantas. A Madre Teresa da Anunciada viveu-a e difundiu-a, dentro de uma robusta espiritualidade, centrada na Pessoa de Cristo, que revela o Deus-Amor. Não o Deus distante dos Filósofos ou o Motor Imóvel, de que fala Aristóteles. O Deus vivo e verdadeiro, revelado por Jesus Cristo é um Deus com «pathos», cheio de paixão e de compaixão. Assim O define S. João: «Deus é Amor». A Paixão de Jesus é a paixão de Deus pela humanidade. O Crucificado revela um Deus, aliado da humanidade. É esta cumplicidade e sentido de aliança, que experimentam os devotos do Senhor Santo Cristo. O Deus-Amor «incarnou» de verdade na vida humana. O nosso imaginário coloca facilmente Deus, lá longe no alto dos Céus, fora da existência humana. Imaginamos a Incarnação de Deus, como «descida» da divindade e a Ascensão de Jesus, como «subida» ao Céu. Na realidade, pela Incarnação e pela Redenção, Deus «humanou»: está presente em todas as situações humanas, por mais dolorosas que sejam. Não há drama humano, que Deus não possa «visitar» e compartilhar. Na Paixão de Jesus, Ele é realmente Deus-Connosco. A Cruz de Cristo manifesta o verdadeiro nome de Deus. O Seu nome é Amor, que Se faz próximo e aliado de cada ser humano. Mais do que teorizar sobre a piedade popular, importa abordá-la, como terreno sagrado, onde se cruza o mistério de Deus com o mistério do homem. O que é preciso é fazer como Moisés, perante a misteriosa sarça ardente: tirar as sandálias e todo o equipamento teórico, que pretenda encerrar o mistério de Deus em esquemas fixos, que não abrangem a incomensurável riqueza do Seu amor. Todavia, há um aspecto da espiritualidade da Madre Teresa da Anunciada que, porventura, ainda não foi devidamente desenvolvido e que, de algum modo, constitui a originalidade da devoção ao Senhor Santo Cristo. Ele é venerado num dos «passos» da Paixão. Por vontade expressa da Madre Teresa da Anunciada, a festa realiza-se em pleno Tempo Pascal, em que a Igreja celebra a Ressurreição de Jesus. Temos aqui uma abordagem completa do Mistério Pascal : Paixão-Morte e Ressurreição. Com a festa em honra do Senhor Santo Cristo, a mística micaelense entende celebrar a realeza de Cristo. E é pelo Mistério Pascal, na sua inteireza, que Jesus é constituído Rei e Senhor. Por isso, a celebração do «Ecce Homo», mais própria de Sexta-Feira Santa, é feita com grande solenidade e esplendor. Eis uma intuição de fé, que mereceria ser mais interiorizada. É relativamente mais fácil identificar-se com o «Ecce Homo», solidário connosco, nas agruras da vida. Mas Ele é nosso aliado, também na vitória da Ressurreição, semente de regeneração humana. É a partir da realidade nua e crua da vida, com todas as suas contrariedades e contradições, que temos de afirmar a força renovadora da Ressurreição de Jesus. Foi o «Ecce Homo» que ressuscitou. N’Ele e com Ele, também nós venceremos a morte e a opressão. Seguindo os Seus «passos», alcançaremos a vitória final. A Paixão é caminho de Ressurreição. Total é a solidariedade e inquebrantável a aliança com o «Ecce Homo»: tanto na Paixão, como na Ressurreição. Não é, pois, um povo resignado que se ajoelha diante da imagem do Senhor Santo Cristo. É um povo que quer ressuscitar e vencer. E sabe que isso é possível. Vive essa certeza, em esperança activa e comprometida. + António, Bispo de Angra

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