Fermento de uma nova sociedade

Homilia do Bispo de Portalegre-Castelo Branco na Jornada Diocesana da Família Nos nossos dias, a transformação social é um dos temas mais recorrentes nas publicações, nas jornadas de estudo e até nas conversas ocasionais. Mas as mudanças não são um exclusivo do nosso tempo. Sempre aconteceram. Pois a vida social dos povos está em permanente transformação. Basta lançar um olhar rápido sobre a História para nos apercebermos da constate mudança no modo de vida, no estilo de relação interpessoal, nos conhecimentos, nos interesses, nas profissões, nos tempos de trabalho e de lazer e até no sistema de valores. As mudanças umas vezes são lentas e superficiais e outras vezes são rápidas e profundas. Quando as mudanças são profundas e atingem o sistema de valores, são classificadas como mutação social. Na nossa sociedade as transformações são tão rápidas e tão profundas que poderemos dizer que estamos perante uma autêntica mutação social. As famílias e as comunidades cristãs são as duas instituições onde essas transformações se fazem sentir com mais acuidade, gerando graves problemas de adaptação aos novos modos de pensar e de viver. As reacções perante estas novas realidades tendem a polarizar-se em dois extremos. Dum lado, os saudosistas, que não conseguem ver o que há de positivo nas mudanças, apresentam-se como incondicionais defensores do passado, mas vivem desalentados e sem perspectivas de futuro. Do outro lado, os que rejeitam liminarmente o passado e aceitam acriticamente tudo o que é apresentado como novidade, independentemente do seu valor, chegando mesmo a assumir a própria inovação como um valor. Procuram no futuro o que só o passado lhes pode dar. São como árvores sem raízes, murcham antes de darem fruto. Entre esses dois extremos, situam-se outros dois grupos: o grande número dos conformistas, que não toma posição e vai sendo empurrado pelos ventos da mudança; e uma outra parcela da sociedade, constituída pelos que, sem abdicarem do passado, acreditam na força transformadora do fermento evangélico e lutam por uma sociedade nova, baseada nos valores perenes do humanismo cristão. É exactamente para este último grupo que apontam as leituras proclamadas nesta celebração. Tanto o profeta Isaías como o apóstolo Paulo nos convidam a percorrer os caminhos da adaptação aos novos tempos, com os olhos postos em Jesus Cristo, Aquele que vive para sempre e permanece igual a si mesmo, ontem, hoje e pelos séculos. Na Sua mensagem encontramos o memorial do passado, a resposta para o presente e o projecto para o futuro. Fixemo-nos nas leituras que acabámos de ouvir. No meio das tribulações, o Povo de Israel caiu no desalento e, levado pelo saudosismo ineficaz, começou a evocar os tempos passados quando o Senhor abriu caminhos através do mar, para o libertar do Egipto. E lamentava-se porque Deus não realizava milagres e prodígios. É nesse contexto que intervém o profeta para dizer ao povo em nome de Deus: vou realizar uma coisa nova que já começa a aparecer. Não vos deixeis vencer pelo desalento, porque o que está para vir é superior ao que já aconteceu. S. Paulo, como todos sabemos, também foi objecto de intervenções extraordinárias de Deus e nem por isso foi poupado às tribulações. No entanto ele não ficou preso ao passado, como muito bem nos explica ao escrever com todo o entusiasmo: esquecendo o que fica para trás quero lançar-me para a frente e continuar a correr para a meta. S. Paulo já tinha encontrado a novidade de que falava o profeta Isaías. E essa novidade de tal modo o fascinou que não hesitou em esclarecer ainda melhor o seu pensamento: renunciei a todas as coisas e considerei tudo como lixo, para ganhar Cristo e n’Ele me encontrar. Eis aqui, meus irmãos, o segredo para interpretar as realidades do tempo presente: olhá-la à luz de Cristo. Na verdade, Jesus Cristo é o único Salvador da humanidade. O único que pode responder a todas as aspirações do ser humano. Quem se encontra com Ele encontra o verdadeiro sentido da vida e, a partir daí, relativiza tudo o resto, quer se trate das tradições antigas quer se trate das inovações da última hora. Nem as tradições nem as inovações têm valor em si mesmas. Umas e outras valem na medida em que ajudam a encher o vazio dos corações e a descobrir o verdadeiro sentido da vida humana. Tudo quanto fica dito pode aplicar-se também à família, que, entre nós, está a atravessar uma das maiores crises da história, inserida no processo de mutação cultural em curso. A família encontra-se num período difícil e precisa de ser ajudada. Se quisermos ajudá-la, nem podemos ficar prisioneiros do passado, quando duas ou três gerações partilhavam os seus bens e as suas vidas, nem alijar para trás das costas todo o tipo de responsabilidades, embarcando na aventura da inovação hedonista. A família, como Deus a quer e no-la propõe, só poderá ser ajudada por quem olhar para ela com o olhar límpido e misericordioso de Jesus Cristo, que não veio para condenar mas para salvar. É por isso que não condena, não despreza, não fica indiferente perante os erros e os pecados cometidos contra a família, antes aponta caminhos novos e regeneradores da pessoa humana, tal como fez com a mulher adúltera: ninguém te condenou? Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar. Sempre houve e hoje também existem fragilidades no seio da família. E quem se sente com o direito de levantar o braço para atirar a primeira pedra? O maior problema não são as fragilidades ocasionais. A família está doente porque se deturpou a noção do pecado, do perdão, da responsabilidade e do amor. Esqueceu-se que o pecado se ultrapassa com o perdão e que o amor se consolida assumindo responsavelmente os compromissos. Ora quando estes princípios não são tidos em conta, pensa-se que é fácil substituir a família por outras instituições. A experiência demonstra o contrário. Quando na família se pratica o perdão, se assumem as responsabilidades e se vive o amor verdadeiro, nenhuma outra instituição a pode substituir seja na promoção da felicidade pessoal seja na educação dos filhos. A Igreja assim o entende ao afirmar que o amor paterno-materno é a fonte, a alma e a norma de toda a educação (F.C.36), incluindo a educação da fé, alcançada através da palavra e do testemunho de vida cristã, reforçados pelo respeito e pela ternura que só os pais podem dar (DGC,227). À família, enquanto igreja doméstica, compete anunciar, celebrar e servir o Evangelho da Vida pela educação dos filhos, da qual são os primeiros e principais responsáveis, pela vida diária de oração e pelo serviço de gratuidade que prestam uns aos outros. E onde poderá a família encontrar os meios necessários para cumprir todas estas obrigações? A resposta a esta pergunta é o papa Bento XVI quem no-la dá quando incita as famílias cristãs a aurirem da Eucaristia inspiração e força para encherem de significado as suas vidas pela vivência correcta do amor conjugal, pelo acolhimento da vida e pelo cumprimento da missão educadora dos filhos, que deverão exercer como um verdadeiro ministério (Cf SC,19). Se os casais cristãos tomarem consciência de que a transmissão da fé e o acompanhamento da vida cristã dos filhos faz parte integrante do ministério que lhes é confiado por Deus, através da Igreja, ao celebrarem o Matrimónio, então cada família cristã poderá ser verdadeiro fermento de uma nova sociedade, respeitadora da vida e da dignidade da pessoa humana. Castelo Branco, 25 de Março de 2007 +José, Bispo de Portalegre-Castelo Branco

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