Felicidade em tempos de crise

A felicidade pode ser uma opção e uma pedagogia, mesmo em tempo de crise. Quem o explica é Helena Marujo, psicóloga e especialista em psicologia positiva.

A felicidade pode ser uma opção e uma pedagogia, mesmo em tempo de crise. Quem o explica é Helena Marujo, psicóloga e especialista em psicologia positiva, que sugere formas de caminhar para a felicidade e deixa dicas para tornar os dias mais positivos.

Agência ECCLESIA (AE) – Os portugueses são um povo triste?

Helena Marujo (HM) – Na área do bem-estar e otimismo têm surgido estudos e investigações, desenvolvidos nomeadamente por estrangeiros, que indicam que os portugueses, quando questionados, por exemplo, no final de cada ano sobre as suas expectativas para o ano seguinte, tendem, de uma maneira geral, a mostrar que se sentem pouco otimistas em relação ao futuro.

Por outro lado, estudos de bem-estar, feitos pela New Economic Foundation, em Inglaterra, ou resultados do World Database of Happiness, apontam que os níveis de bem-estar autoavaliados pelos portugueses estão mais baixos que as médias e tendem até a estar mais baixos que países em que as condições materiais, de vida, até de paz ou de guerra, são piores que as nossas. Há qualquer coisa na nossa cultura que espera o pior, algo que não permite ter visões entusiasmadas e esperançadas no futuro.

 

AE – Esta visão impede o encontro com um caminho de felicidade?

HM – Claro que não. Um estudo da New Economic Foundation mostra que nos indicadores de bem-estar subjetivo e individual, os portugueses se avaliam dizendo que estão pouco satisfeitos com a vida; quando questionados acerca da qualidade das suas relações sociais, os valores disparam e saltamos para um honroso lugar nos países da Europa. Há sinais que mostram uma satisfação com as relações, com a forma como somos e vivemos. Através das relações sociais podemos potenciar algumas tendências nossas.

Há um estudo feito em Portugal, pelo professor Miguel Pereira Lopes, no contexto empresarial, sobre o otimismo e o pessimismo, que revela um dado interessante – somos um pouco paradoxais, simultaneamente otimistas e pessimistas. Ainda que a ciência diga que é possível ser as duas coisas – não é um contínuo, os portugueses têm mais paradoxos. Isto pode ser positivo se agarrarmos o que nos faz ser otimistas, quais são as nossas áreas de bem-estar.

Penso, por exemplo, na capacidade de criar partindo da consciência do que fazemos melhor, do que funciona na nossa sociedade. Somos ótimos nas relações familiares, continuamos a dar uma grande importância às amizades, à presença da família – e podemos ir buscar, a essas forças coletivas, algo que nos faça compensar o lado menos confiante no futuro.

 

AE – Fala em diversas entrevistas e nas conferências em que participa que a sociedade se encontra num ponto de viragem. Que circunstâncias vivemos para indicar este ponto de viragem?

HM – Estamos num momento fantástico e, ainda que tantas vozes digam constantemente que estamos em crise profunda, seja económica, social ou política, considero que estamos a caminhar para uma sociedade que busca mais o sentido da vida, que quer refletir nas suas escolhas e está a perceber que as visões de competitividade, consumo e individualismo que marcaram as últimas décadas, deixaram de fazer sentido e não nos levaram para um caminho que nos orgulhe.

 

Está a aparecer nas ciências sociais e humanas a preocupação em investigar o que leva as pessoas a estar na sua excelência, que procuram outras formas de ser sociedade, investir no voluntariado, criar mais espaços de cooperação.

 

Há sinais muito interessantes e, noto isso não apenas no trabalho na Universidade (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Lisboa, ndr.) com os alunos que são para mim um barómetro importante, há uma sede imensa de parar para pensar, reavivar os valores que de facto fazem sentido, deixar uma visão passiva, de consumidor de coisas com efeitos transitórios nos níveis de bem-estar, para voltar ao essencial.

 

E as relações humanas são essenciais. Viver uma vida com propósito, comprometida, virada para o bem comum, é o caminho que estamos a descobrir.

 

AE – Portanto, é possível falar de felicidade num momento social e económico que Portugal está a atravessar? Este é um tempo de oportunidades?

HM – Eu penso que sim, precisamente por estarmos num momento difícil, temos que nos reencontrar.

 

É nos momentos menos bons, no confronto com alguns becos resultantes de escolhas que enquanto humanidade fomos fazendo, em questões tão profundas e fortes como as injustiças sociais que, quando paramos para definir o que queremos, percebemos que não estamos mais felizes, apesar de muito mais ricos e estamos mais sozinhos. Precisamos voltar a apostar no valor coletivo, no que nos une, no amor, na criatividade, na generosidade, na gratidão. Penso que isto está a surgir e é precisamente pelo confronto com as crises que vamos mais longe.

Há uma área de estudo que me apaixona na psicologia positiva, que é o crescimento pós traumático, que se revela na saúde, na área económica ou perante catástrofes naturais e é espantoso perceber que as pessoas que passaram por situações difíceis conseguiram crescer, ou consideraram estar melhor enquanto seres humanos. O que encontramos é uma resposta muito positiva. Pedimos por vezes aos alunos na Universidade que escrevam sobre a altura em que melhor estiveram na sua vida, em que sentiram mais orgulho em ser quem são, e frequentemente, as respostas que temos ligam-se a alturas difíceis da vida. Isto é generalizável.

Nos momentos mais difíceis descobrimos que temos forças extraordinárias, virtudes de caráter que nem sonhávamos, capacidade para pensar e fazer de outra maneira. Penso que este é o ponto de viragem em que nos encontramos e, por isso, está tudo em aberto.

 

AE – O caminho de felicidade treina-se, há uma pedagogia?

HM – Nas últimas décadas os cientistas começaram a interessar-se por isto e têm estudado algumas práticas de vida.

Perceber o efeito que tem viver emoções positivas, a dieta emocional, ou seja, escolher diariamente a alegria, o aprender coisas novas, a expressão do amor e gratidão, do sentido de humor.

Existe uma linha de investigação, com impacto mundial, conduzido por Barbara Fredrickson que, em contexto laboratorial, tem mostrado claramente que, quando nos sentimos bem e a viver emoções positivas, vivemos em média mais 10 anos do que as pessoas que se abatem e se frustram pela mais pequena coisa ou deixam a raiva crescer perante o desânimo. Ao mesmo tempo que se valida o sofrimento – não se faz de conta que ele não existe – precisamos de sobre compensar para sermos capazes de avançar como pessoas.

A dieta emocional, o cuidar de coisas que nos fazem sentir bem, particularmente em momentos difíceis, ser capaz de acreditar em alternativas, procurá-las, cuidar do que o faz sentir bem no dia a dia, ser capaz de desenvolver e apostar nas emoções positivas diárias, são pedagogias.

Outra é investir na nossa capacidade de focar o que funciona na nossa vida e na nossa sociedade. Fomos ensinados, até pela sobrevivência da espécie, a estar mais sensível ao mal do que ao bem. Tem, obviamente, uma função adaptativa importante mas se, ao mesmo tempo, não notarmos no que há de funcional, saudável, de belo e bom à nossa volta, é provável que nos deprimamos, deixemos de acreditar na vida, sem vontade de levantar de manhã.

Precisamos de treinar a nossa capacidade de ver que nas circunstâncias difíceis, há coisas boas. Há seres humanos que conseguem, perante vidas dificílimas ser constantemente inspiradores de confiança no futuro, de entusiasmo e desdramatização. O ser humano inspira-se mutuamente, por isso precisa de mais modelos e holofotes sobre modelos e pessoas nas nossas comunidades que fazem diferença, porque guiam o nosso olhar e a nossa vontade de sermos melhores pessoas. Sublinhar histórias de pessoas boas e de bem, de produtos e serviços positivos que nos rodeiam, ajuda-nos a continuar a acreditar, a confiar e a ter esperança.

 

AE – A positividade é uma opção?

HM – Creio que sim. Alguns estudos em Inglaterra e nos Estados Unidos da América vão nessa linha e querem perceber se a felicidade ou o otimismo são coisas genéticas, das quais é difícil fugir, ou se são os acontecimentos de vida que determinam a forma como nos sentimos. Alguns indicadores apontam resultados surpreendentes.

Por exemplo: alguns dados indicam que cerca de 50% da nossa felicidade é influenciada por tendências genéticas. Mas apenas 10% do que nos acontece parece interferir com a satisfação global da nossa vida. Quer dizer que temos 40% de escolha, de opção sobre que limonada fazer com os limões azedos que a vida me dá. Há muitas pessoas que fazem limonadas extraordinárias e conseguem encontrar formas de superação.

Existem no mundo tantos exemplos, às vezes dentro das nossas casas e não reparamos neles. Portanto, precisamos conhecer-nos melhor no nosso melhor, na nossa excelência. O fantástico do meu trabalho é perceber isso. Quando perguntamos a uma criança pobre que tem o pai preso por tráfico de droga, ela consegue dizer o que a orgulha mais na sua família.

Encontramos um potencial de trabalho bastante grande. É necessário tomar consciência das virtudes delas e fazê-las render. Isso é outra pedagogia da felicidade.

 

AE – Os cristãos são pessoas tristes?

HM – Obviamente que temos um modelo do sofrimento e da morte de Cristo. A cruz está em todas as nossas igrejas e em muitas das nossas casas para nos lembrar e fazer acordar para a ideia de que o sofrimento faz parte da experiência humana. Mas temos a leitura de ressurreição e a possibilidade de perspetivar a vida humana numa visão constante de renovação e restauração a cada momento.

Vivi nos EUA e numa igreja católica que conheci e frequentei, uma coisa que me impressionou, contrariamente à minha experiência num país latino, não havia imagens da morte e da crucificação, apenas da ressurreição. Os espaços da celebração eucarística eram de grande alegria. Há muitas formas de viver o cristianismo e eu conheço muitos cristãos que são fonte de alegria permanente e, por ser cristãos, se agarram e usam a sua crença religiosa como um permanente motor para dar, por onde passam, um sinal de vida e não de morte.

 

AE – O sofrimento pode ser uma pedagogia para a felicidade?

HM – Para algumas pessoas, as experiências de sofrimento podem ter sido momentos de viragem, mas não precisamos passar pelo sofrimento para ser felizes. Não precisamos que algo terrível aconteça para finalmente pensarmos na nossa existência, decidir o que é essencial ou refazer o dia a dia e as escolhas.

No cruzamento que faço entre a ciência e a psicologia positiva, que partilho nas conferências e palestras, é que não precisamos do sofrimento para ser felizes. Muitos que já sofreram mostram que o sofrimento serve de alavanca, mas uma outra maneira de avançar como humanidade é fazer crescer o bom, não necessariamente esperar que aconteça o mal para nos transfigurarmos.

O sofrimento é parte da nossa existência, felizmente ou infelizmente. A dor tem de fazer parte do nosso olhar, temos de estar preparados para lidar com ela da melhor forma. Mas fazer crescer uma rosa não é o mesmo que limpar as ervas daninhas. Tirar as ervas daninhas não me dá um jardim, eu tenho de plantar coisas belas.

Precisamos de pensar no que queremos cultivar, os valores e práticas de vida que nos fazem sentido, que mensagem dou na fila do supermercado, ou numa fila de trânsito? Dou uma mensagem de querer estar à frente ou de amor? Até isto está a ser estudado pela psicologia positiva.

Há um tipo de meditação – a Loving-kindness Meditation – que implica convidar as pessoas a meditar nos atos de amor que fizeram ou receberam. Os estudos mostram um aumento das emoções positivas, do comportamento social, da aproximação ao outro e uma transformação pessoal. Coisas simples podem tornar-se grandes soluções se ensinarmos as crianças a introduzir práticas como esta nas suas vidas e pode estar aqui uma nova janela sobre o futuro.

 

AE – Destacou que ultimamente se procura o sentido da vida. A espiritualidade pode ser um caminho para a felicidade?

HM – Sem dúvida. É um dos caminhos. A espiritualidade que pode ser ou não religiosidade. Há muitas pessoas agnósticas que são profundamente espirituais. A experiência da busca de sentido, de perguntar o que quero fazer da minha vida, onde quero estar daqui a uns anos, coisas aparentemente simples mas difíceis – o que gostava de escrever numa carta antes de morrer, o que gostava de ter na minha lápide – ajuda-nos a refletir melhor sobre a existência.

Quando paramos para pensar, em vez de passivos consumidores, percebemos que de facto é pela espiritualidade, pela busca de sentido e pela compreensão que não há felicidade virados para os umbigos individuais, mas apenas voltados para o bem comum, pode ser cuidando do planeta, ou de crianças, ou fazendo algo onde me sinto a participar na construção coletiva, sentir que sou ativo na construção da sociedade e o que eu faço entra num bolo maior, onde a minha contribuição conta, isto é também uma cultura espiritual. Há livros sobre o cultivo da espiritualidade no contexto das organizações. Isto é novo e até assustador para espaços conservadores que consideravam que a espiritualidade se ligava apenas à religião.

 

AE – E com a esfera privada…

HM – Precisamente. E estão a entrar na ciência e no coletivo. Tenho a sorte de poder falar sobre isto em empresas onde me convidam e é fantástico porque faz muito sentido às pessoas. Toca um ponto nevrálgico, como se durante anos tivéssemos escondido recursos que envergonhavam, porque conotados com posicionamento filosófico, moral ou religioso e vai muito para além disso. Todas as pessoas, muito além do que acreditem ou não, desde que tenham um percurso de vida que pode ser transformador, já está, a meu ver, é ser profundamente espiritual e faz a diferença.

 

AE – O dar-se e o sentimento de pertença fomentam o caminho de felicidade?

HM – Sim e nesse sentido uma visão de felicidade só com emoções positivas é muito redutor. É importante, mas o lado hedónico da existência não chega. Daí que os atuais modelos de felicidade apontem para uma vida com compromisso, em algum projeto – seja a família, o emprego, um hobby, um projeto de voluntariado – onde se possa colocar em ação o que se faz de melhor.

Para além disso precisamos de relações positivas. Não há felicidade na solidão. Somos seres que precisam de afeto e reconhecimento do outro, do contacto físico e do olhar – coisas das quais nos temos vindo a afastar.

Precisamos de atingir metas, estabelecendo objetivos e caminhando para eles e aí, de novo, estamos a transformar-nos porque não são os objetivos materiais que estão na linha da frente. É nesta conjunção de vários elementos que a ciência diz que a felicidade é passível de ser compreendida, ser medida e hoje temos bases de dados que avaliam a felicidade das pessoas.

 

AE – Pedia-lhe três dicas para que os leitores possam viver melhor o dia de hoje…

HM – A primeira é reparar e escutar com atenção as notícias boas das pessoas à vossa volta. Liguem uma antena especial à procura de boas notícias e quando as ouvirem, respondam ativamente, de forma construtiva. Parem, entusiasmem-se e peçam detalhes sobre essa boa notícia. Aproveitem qualquer boa notícia, de qualquer pessoa à vossa volta e ponham fermento, façam-na crescer.

A segunda é registar diariamente, pelo menos, três bênçãos do dia. Identificar e fazer um diário positivo dos acontecimentos do dia que fizeram sentir bem. São estratégias que a ciência estuda e indica que podem aumentar a felicidade.

Para terceira sugeria um investimento na gratidão que é uma área de grande potencial e com grandes efeitos cardiovasculares. Escolham uma pessoa a quem tenham algo a agradecer, escrevam uma carta e façam uma visita de gratidão para ler a carta. É estranhamento difícil. É muito fácil olhar nos olhos e criticar mas tão difícil olhar nos olhos e dizer tudo o que temos para agradecer. Está na altura de mudar esta cultura e tornar mais fácil dizer o bom e menos o mal.

Eu acrescentava uma quarta – arranjem pedómetros, contadores de passos, e passem a fazer 10 mil passos diários se quiserem ter saúde física, pois não há felicidade sem um corpo cuidado, 13 mil passos diários se quiserem perder peso, mas assegurem-se que diariamente fazem, no mínimo acima de cinco mil passos. Muita investigação científica mostra que abaixo dos cinco mil passos, o risco cardiovascular é elevadíssimo e uma boa forma de saber se estamos em risco é através de um contador de passos.

Ter como meta cuidar da nossa saúde e mudar de uma sociedade inativa para formas de ação generosas, de relações positivas, e de comunicação são também formas de felicidade.

LS

Partilhar:
Scroll to Top
Agência ECCLESIA

GRÁTIS
BAIXAR