Joana Morais e Castro
Estamos numa fase propícia para impulsos alimentados por discursos polarizados. Na comunidade onde vivo, nas escolas onde vou, na rua, na faculdade onde dou algumas aulas, nos mais jovens e nos mais velhos, vou escutando desabafos de descontentamento, irritação, insegurança, desconfiança e medo. São emoções legítimas perante o cenário sociopolítico do país e do mundo. São emoções válidas, em cada um de nós, perante o contexto e perante a realidade e, sobretudo, as dificuldades do dia-a-dia. Mas não deixam de ser emoções perigosas para a escolha e participação num processo eleitoral democrático tão sério quanto o que estamos em vésperas de vivenciar. Por outro lado, se este conjunto de emoções podem ser perigosas num processo de decisão de voto eleitoral mais perigosas se revelam quando conduzem a uma desistência de voto. A abstenção. Sim, a abstenção não é só uma indiferença perante o futuro de um país, é uma violência por omissão que pode em si conduzir para algo ainda mais grave: coloca em causa o próprio sistema democrático. É uma desistência da liberdade de decidirmos quem nos representa. É abrir a porta a uma possibilidade: a de desistirmos de um futuro coletivo.
“Não tenho em quem votar”, ouço muitas vezes. Infelizmente até me revejo nesta dificuldade de encontrar, com confiança, o partido para o qual manifestarei este ato cívico mas isto justifica não o fazer? Como posso tomar uma decisão livre e consciente? Qual o valor de uma cruz?
Proponho responder a estas três questões a partir da coragem, da diferença e da interdependência.
“Coragem, não tenhais medo!” Papa Francisco
A Coragem. As emoções, sendo fundamentais, têm o risco de condicionar ou mesmo enganar em processos de escolha. Há uma emoção especialmente arriscada quando falamos de decisões sociais e políticas, o medo. Ao longo da história os discursos e propostas sociais e políticos que utilizam o medo como forma de manipulação ou até de desumanização conduziram sempre à legitimação de atrocidades. Neste sentido, é importante aceder à informação disponível, resistir à rapidez e sobrecarga de análises e encontrar espaços de confiança, diálogo e serenidade para com inteligência e fundamento escolher com base nos valores que cada um defende. Pessoalmente utilizo o quadro humanista onde os direitos humanos, quase sempre, respondem às dúvidas e incertezas. Exercitando a paciência e tranquilidade para esta reflexão, ao medo apenas resta-nos combater com a coragem de votar. Votar é um ato de coragem cidadã. Uma coragem de assumirmos uma participação livre e responsável em nome próprio e de todos.
A Diferença. A partir da coragem, é importante procurar compreender o todo e o particular. E com as devidas informações que cada partido político disponibiliza conseguimos questionar em cada um deles qual a coerência, as prioridades e as propostas concretas que propõem. O questionamento, a análise do que está bem e do que está mal, do que deve ser mantido ou o que deve ser mudado, deve fazer parte da análise para todas as propostas. É difícil não cair na tentação do defeito, porque a análise da proposta de cada um dos partidos políticos pode parecer sempre incompleta. Porque o é. Mas importa neste ponto analisar questões concretas, que fazem parte das preocupações do dia-a-dia, nosso ou de quem está ao nosso lado e sobre as quais podemos observar injustiças sociais, mau funcionamento de instituições centrais ou invisibilidade. Qual a proposta dos partidos políticos candidatos às eleições para estas situações? Sinto confiança nelas, serão ajustadas a esta realidade que estudo ou observo? O particular, quase sempre, nos dá boas pistas para propostas que estão dentro do nosso quadro de ideias. Quando falo em propostas, falo também em realidade ou seja, são exequíveis? Estão dentro do respeito dos direitos fundamentais? Há uma intenção de construção de justiça e paz? Gostava de realçar que a indiferença a determinados assuntos também é uma proposta política e se há assuntos que são invisíveis ou indiferentes num programa político, muitas vezes, nos demonstra a credibilidade e seriedade do mesmo. E neste ponto, de credibilidade e seriedade, não podemos ignorar o papel das lideranças. Um perigo imediato é o das aparências, os discursos mediáticos que muitas vezes nos confundem do foco principal de um líder que se propõe a governar um país e se o faz, de facto, em prol do bem comum. Com frequência, somos inundados de discursos simplistas e inflamados que nos distraem do central. É importante questionar se este ou aquele protagonista político está, efetiva e afetivamente, ao serviço. Tem as características de alguém ao serviço da nossa comunidade, toda, mesmo daquelas pessoas que têm ideias diferentes? Um líder que não seja capaz de dialogar com todos e que não tenha capacidade de colaborar, nunca será um líder ao serviço dos portugueses.
Em relação a questões concretas, um dos temas que me preocupa é a dignidade da vida das pessoas com deficiência. Ao propor-me analisar os diversos programas políticos disponíveis, verifico que em alguns existe uma total omissão de propostas (indiferença), noutros a linguagem é desadequada às exigências da Convenção sobre os Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência (manipulação) e noutros verifico que há propostas adequadas que procuram a continuidade nos direitos adquiridos até ao momento. Como, por exemplo, a manutenção de medidas de apoio à vida independente. Poderá parecer um pormenor para quem não está tão dentro desta realidade, mas não é. A vida independente, que exige uma decisão política de apostar na manutenção dos centros de vida independente e a dignificação do estatuto de assistente pessoal, muda substancialmente a vida de milhares de pessoas (pessoas com deficiência, famílias, empregadores, postos de trabalho), a ausência ou diminuição de medidas políticas que garantam a sua existência e alargamento vão colocar pessoas em risco de pobreza, vão colocar em causa a evolução de uma sociedade inclusiva, vão prejudicar as empresas que empregam pessoas com deficiência, vão aumentar o desemprego das pessoas com deficiência, dos familiares, dos assistentes pessoais. Ora, não é apenas um pormenor ou apenas um parágrafo num programa político. São vidas. A vida e o seu valor deve fazer diferença no voto. Nesta área que procuro estudar, consegui adquirir informação e ter pistas que (me) tranquilizam ou (me) inquietam para valores que defendo. Claro que não é suficiente um assunto para tomar uma decisão de voto, podem dizer. Mas todos os assuntos são interligados e conseguimos relacionar os princípios que estão no fundamento. É apenas um, dos diversos temas mas, em concreto, é uma forma de saber, pelo menos, por quem não tomarei uma decisão de voto. Ou seja, a partir do concreto vou-me munindo de informação e opinião para a decisão do todo.
Por último, a interdependência. Uma cruz num boletim de voto pode parecer um ato pequeno, demasiado independente ou isolado para fazer uma diferença substancial no futuro de um país. Mas aí está o grande engano que coloca esta ideia como ameaça à participação ou incentivo à abstenção. O Papa Francisco diz que “a política é uma das formas mais elevadas da caridade, porque ela procura o bem comum”. Um cruz num boletim de voto não é um pequeno ato, nem um ato independente. É dos mais nobres atos de interdependência e liberdade. É uma das formas mais concretas para sermos parte ativa no futuro das gerações.
Comecei a falar do medo e os seus riscos como ferramenta política ou como emoção exclusiva para a decisão de votar. Esta semana, uma pessoa com deficiência, que muito admiro, disse-me que o seu maior medo é perder a liberdade que adquiriu com o apoio à vida independente. O meu ato de coragem é dizer-lhe que a escutei, que votarei para fazer a diferença porque a sua vida é minha também. Votemos. Não tenhamos medo.
Para onde vai o meu voto?
Para Nós.
Joana Morais e Castro
01 de março 2024