Fátima é um acontecimento plural na sociedade portuguesa que tem conseguido acompanhar as transformações sociais e religiosas, fruto do contributo pessoal de cada peregrino, que permite ao espaço não se esgotar na estrutura mas abrir o fenómeno a todos, quer tenham maior ou menor inscrição na ecclesiosfera. Em entrevista à Agência ECCLESIA o antropólogo Alfredo Teixeira analisa a complexidade e avança os desafios que Fátima enfrenta dentro das mudanças globais.
Entrevista conduzida por Lígia Silveira
AE – Fátima pós-Papa Francisco e Fátima pós-celebração do centenário são dois acontecimentos que se cruzam para pensarmos em Fátima nos dias de hoje?
AT – O centenário em si, como acontecimento, não pode desligar-se da presença do Papa porque esse foi, claramente, o ponto culminante de um contexto festivo e de celebração da memória do próprio santuário. A presença do Papa Francisco ficará muito vinculada a este centenário.
Não sei se podemos já falar de um pós-centenário. Não temos ainda a capacidade de perceber o que o centenário, enquanto acontecimento, pode ter introduzido naquilo que serão as dinâmicas e práticas do Santuário no futuro. Sabemos que o centenário foi o acontecimento que remodelou alguns aspetos da presença de Fátima no imaginário e na perceção social que se tem do Santuário.
AE – Tais como?
AT – Parece-me claro que este centenário sublinhou a dimensão de forte inscrição do fenómeno Fátima na sociedade portuguesa, em termos culturais. O Santuário criou alguns “produtos institucionais” que não estavam tão presentes naquilo que era a sua forma mais tradicional.
Uma agenda cultural, uma programação musical vastíssima com a presença de muitos compositores e intérpretes de âmbito nacional e internacional. O Santuário afirmou-se como uma instituição relevante na sociedade portuguesa muito para além do que possam ser as práticas dos crentes em torno de Fátima, que continuarão a ser o capital simbólico mais importante do Santuário.
Creio que podemos afirmar que o próprio centenário trouxe algo de diferente na forma como o Santuário se posiciona na sociedade portuguesa. Não sabemos ainda que alterações pode provocar na receção do próprio centenário nos anos vindouros.
AE – Para além da área cultural, há um esforço na área académica, como mostraram os congressos teológicos. Apesar disso fala-se ainda de uma reserva intelectual sobre o fenómeno Fátima. A seu ver, justifica-se?
AT – Há sinais, mas estamos numa situação diferente de algumas décadas atrás. O interesse científico acompanha Fátima mas distribuiu-se desigualmente. Se há algumas disciplinas que se confrontaram sempre com Fátima, a História do século XX é um exemplo disso, não deixa de existir um amplo silêncio noutras áreas. Se observarmos o que é a produção sociológica ou antropológica sobre Fátima não deixa de haver uma certa distância entre aquilo que é a relevância do fenómeno na sociedade portuguesa e o interesse que desperta por parte de disciplinas de ciências sociais. Parece-me claro que há algum desajuste.
Essencialmente dá-se por conhecido algo que verdadeiramente não o é. Porventura, Fátima está de tal maneira entranhado na biografia das pessoas, que quase, por defeito, se parte com a ideia de que se trata de um fenómeno conhecido. Isso afasta a investigação, talvez por considerarem não ser fácil justificar a relevância do estudo de Fátima, porque há um pressuposto, a meu ver errado, de que o fenómeno seria suficientemente conhecido.
Há muita coisa que acontece em Fátima; muitas práticas, sobretudo a pluralidade de significados que pode ter para as pessoas, é um mapa que ainda não conhecemos.
Este interesse pelo próprio Santuário de chamar a si as academias e abrir a esse estudo, não é novo, mas diria que a partir deste centenário talvez haja novas condições para alargar esse interesse.
AE – O facto de o Papa Francisco ter estado em Fátima e ter recolocado o culto mariano não como uma devoção a uma santinha, mas ter indicado Maria como a mestra espiritual, poderá ajudar a recolocar Fátima?
AT – Tenho ainda pouco a dizer sobre esse ponto de vista porque não sei que reflexos esse discurso teve nas perceções e práticas de Fátima.
AE – Fala do ponto de vista da sociedade ou da Igreja?
AT – Da Igreja também. Achei que o momento da presença do Papa foi vivido, essencialmente, como presença. Não me parece que o seu discurso tenha tido uma receção muito clara, isso foi evidente nos media. O discurso em si teve poucos comentários, foi recebido de forma pouco aprofundada. A sua presença sim, o seu gesto.
Estou ainda a perceber que impacto isso pode ter, primeiro, na forma como se construa uma lógica pastoral em relação a Fátima, sobretudo em relação a Fátima e as outras dimensões do catolicismo na sociedade portuguesa. Um discurso ou homilia feito por um Papa não tem, obviamente, um impacto direto nas práticas dos peregrinos. Há um conjunto de mediações que passam pelos próprios contextos de origem dos peregrinos que não permitem essa relação direta.
Eu diria que o discurso do papa Francisco foi corajoso, desse ponto de vista, teve uma dimensão profética e introduz uma leitura crítica de alguns comportamentos relativos às práticas devocionais.
Mas Fátima é muitas coisas. A sua plasticidade tem-se adequado a todos os momentos da sociedade portuguesa. Quem lia Fátima no discurso do Estado Novo, como um suporte para emblematizar a identidade nacional, acharia que quando nos tornamos numa sociedade democrática e plural, Fátima poderia sofrer com essa conotação.
Fátima foi-se articulando com os diversos momentos da sociedade portuguesa na medida em que está inscrita de forma plural nas identidades de muitos portugueses, os portugueses vão fazendo coisas diferentes com essas memórias e práticas. Ter a capacidade de ver de forma linear a relação entre um discurso e uma pluralidade de práticas, parece-me difícil.
AE – Falta uma reflexão por parte da hierarquia da Igreja para propor algumas dimensões que o Papa Francisco tenha deixado, mesmo sobre o papel de Fátima no catolicismo português?
AT – Não sei se é na hierarquia que falta essa reflexão. Diria que falta ter uma consciência mais clara da centralidade que Fátima tem no próprio catolicismo português, já não falo em termos gerais na sociedade portuguesa.
No estudo «Identidades religiosas em Portugal: representações, valores e práticas», em 2011/2012, observamos que o número de frequências ou visitas a Fátima estava estritamente dependente do grau de pertença dos católicos. Desde o católico com uma maior inscrição na comunidade católica ou o militante, até ao mais afastado, o católico nominal – com uma fraca pertença e inserção nas comunidades-, entre um extremo e outro, o que percebemos é um declínio quase geométrico do número dos que mais vezes vão a Fátima.
Isto parece ser um indício pouco significante, mas dá conta da centralidade que Fátima tem nas práticas católicas em geral. Isto não passa apenas pelas práticas de peregrinação. Há muitos dinamismos católicos que, aproveitando a centralidade geográfica, fazem de Fátima um grande polo do catolicismo em Portugal.
Se do ponto de vista das práticas isto se torna evidente, na lógica da organização pastoral da Igreja não há uma incorporação desta evidência. Também porque a natureza da Igreja é a sua constituição através de Igrejas diocesanas e comunidades locais, esse é o dinamismo essencial. Mas tendo em conta as práticas das pessoas hoje, as práticas do território, as práticas que definem a sua condição de mobilidade, há que pensar a identidade católica noutras escalas.
AE – Não estamos a saber acolher aqueles que procuram Fátima como primeiro local de inquietação espiritual?
AT – Eu diria que não há uma suficiente ligação entre todas estas dimensões. O visitante de Fátima que, sendo muito periférico na sua inscrição no espaço católico, é alguém numa demanda espiritual de alguma coisa que o preencha, até à presença em Fátima de forma muito regular de pessoas com responsabilidade eclesiais e que ali se reúnem…. Esta pluralidade de situações, penso, não têm ligação suficiente porque, talvez, Fátima – embora seja central do ponto de vista das práticas dos crentes – não tem uma centralidade quando se pensa o país numa lógica pastoral mais integrada.
AE – O jornalista José Milhazes, referia há alguns meses, que a mensagem de Fátima não é plenamente divulgada. O Frei Bento Domingues afirmava que Portugal devia fazer de Fátima o altar da mensagem de Fátima.
AT – Esta relevância que Fátima pode ter na articulação das diferentes dimensões da experiência eclesial não pode ser, a meu ver, uma desertificação de todas as outras dimensões de integração e acolhimento eclesial dentro da eclesioesfera católica. Refiro-me a uma capacidade de articulação e não de um modelo de centralização que esvazia, fazendo de Fátima a grande diocese nacional, ou a grande paróquia. Isso não seria uma proposta muito feliz.
Mas a capacidade de fazer de Fátima algo que está no mapa das preocupações pastorais, mesmo de uma paróquia ou diocese, e que o possam fazer de maneira integrada, tendo em conta a capacidade de atração que Fátima tem, isso parecer-me-ia uma lógica de ação pastoral eficaz.
AE – Fátima é um local interclassista. Isso ajuda a explicar o fenómeno?
AT – Nenhum fenómeno se torna massificado se não reunir a diversidade demográfica do país. Os espaços rurais e urbanos, as classes mais letradas e menos letradas, os que estão melhor e pior do ponto de vista socioeconómico. Também a partir destas diferenças as pessoas olharão e praticarão Fátima de forma diferente. Mas a plasticidade, o facto de ser muitas coisas, permite que pessoas de origens muito diferentes encontrem ali qualquer coisa. Fátima é, de longe, o contexto mais plural que podemos encontrar em Portugal.
AE – Regressando às palavras do Papa Francisco, ele não esqueceu, em Fátima, os pobres, os marginalizados e esquecidos. De que forma o Santuário dever estar atento mas também que proteção procuram os mais frágeis naquele local?
AT – Fátima encontra-se com as pessoas a partir da sua situação. A fragilidade das pessoas poderá ser de ordem espiritual, relacionando-se com as suas experiências pessoais. Sabemos que as sociedades de hoje, de múltiplas modernidades onde é difícil viver, onde as pessoas sofrem o impacto no seu quotidiano de uma complexidade muito grande, mesmo estando em muitos casos em situações económicas estáveis e confortáveis. Mas há também um grande número de pessoas que vive vulnerabilidades várias e, claramente, Fátima tem uma forte relação com as diferentes experiências de vulnerabilidade.
Num célebre livro do Frei Bento Domingues «A religião dos portugueses», o autor fala de Fátima como um grande cais, associando a uma experiência da partida dos barcos no Cais de Alcântara, em Lisboa, para o Ultramar e essa experiência de despedida, intensa e emocional de separação, é transportada para Fátima como esse lugar onde as pessoas choram, onde colocam a sua fragilidade.
Se alguma capacidade extraordinária tem Fátima é a de ser esse lugar onde as pessoas podem chorar coletivamente, onde as pessoas podem viver a sua vulnerabilidade de uma forma intensa e junto com os outros.
Nesta perspetiva, Fátima é incomparável porque não encontramos um lugar onde esteja tão intensamente presente esta experiência de levar connosco a nossa fragilidade e aí vivermos junto com os outros. O caminho pode ser uma experiência solitária, mas na experiência no Santuário adensam-se as histórias e encontram-se percursos de vida muito diversos. Essa capacidade que Fátima tem ganha impacto nas pessoas que ali chegam com maior vulnerabilidade, que vivem em certas periferias, seja mais económicas ou periferias existenciais.
AE – O fenómeno de conjunto sobrepõe-se à experiência pessoal?
AT – Penso que se articulam numa dupla dimensão. Uma característica dos fenómenos religiosos que apresentam mais vitalidade hoje são os que abrem espaço ao indivíduo na sua singularidade articulando-se com uma experiência forte de comunhão.
Embora de natureza diferente, a vitalidade de Taizé depende disso. É um espaço de peregrinação com outras características, mas esta dimensão de abertura a um nível individual, onde a pessoa com a sua liberdade e a sua história se pode dizer e ao mesmo tempo se pode encontrar com uma história coletiva; no caso de Taizé, com essa marca intercultural e global, são duas dimensões que não estão em tensão ou contradição.
AE – A internacionalização do Santuário de Fátima, muito pela presença dos Papas desde Paulo VI, tem recolocado o santuário e a mensagem de Fátima no mundo?
AT – A ligação a Roma e à figura dos Papas, neste contexto, é um dos meios decisivos na construção da Fátima global. Fátima acompanha as transformações das identidades nas sociedades complexas. As identidades não se definem hoje apenas na escala local. Isso é evidente nas gerações mais novas que, quando se pensam como pessoas no mundo, não se pensam apenas como pessoas numa escala local, mas pensam-se numa escala de fluxo e relações que tem já esse registo global.
O que acontece é que Fátima vai acompanhar este trânsito cultural. Costumo falar de Fátima como um fenómeno de destradicionalização da sociedade portuguesa. Portugal permaneceu com indicadores de tradicionalidade religiosa até bastante tarde. Tínhamos uma religiosidade, em meados do século XX, fortemente marcada por práticas tradicionais, ligadas à religião comunitária: a romaria local, regional, a economia do simbólico que havia em torno do santo patrono de um lugar. Tudo isto permaneceu com muita força na sociedade até bastante tarde.
Quando a sociedade começa a sofrer o influxo de outras dinâmicas, de modernização, urbanização, industrialização, o fluxo de novos comportamentos e ideias que surgem com a migração… tudo isto foi exigindo que os imaginários religiosos e as práticas das pessoas encontrassem outros suportes.
A meu ver, a importância de Fátima vai fortalecer-se ao acompanhar este trânsito. Nos anos 60, com a forte migração dos espaços rurais para os urbanos e para a faixa litoral do país, em muitos casos, esse trânsito foi acompanhado de uma certa desestruturação religiosa.
As pessoas que nos anos 60 se deslocaram para as zonas periféricas ou periurbanas em Lisboa chegaram a Santa Apolónia de comboio e não encontraram aqui o Deus da sua terra. Foi necessário encontrar outros lugares simbólicos que acompanhassem o processo de reindentificação num outro contexto. Fátima ofereceu isso. E pela importância de Fátima na emigração nas comunidades portugueses, conseguimos perceber essa dimensão.
Ao contrário da religiosidade tradicional, sedentária, amarrada aos lugares, Fátima tinha esta capacidade de ser portátil. Quase como uma montra que mostra Nossa Senhoras de todos os tamanhos, metaforicamente, mostra a portabilidade de Fátima.
Esta Fátima global acompanha a transformação da sociedade. O que torna Fátima, por um lado, um fenómeno religioso que apresenta estas características de vitalidade, e por outro, esta capacidade de não sofrer a erosão que outras formas de identidade religiosa sofrem – ao contrário daqueles números que estamos habituados a ver sobre a prática dominical católica onde, desde os anos 60, vamos assistindo a uma certa erosão, não encontramos o mesmo nas visitas a Fátima. Fátima tem acompanhado estas transformações societais fundamentais e isso torna-a complexa e com capacidade de acompanhar a mudança.
AE – Não podemos esquecer a canonização dos Pastorinhos que aconteceu na celebração do centenário. Que contributo tem esta canonização para reposicionar o fenómeno de Fátima?
AT – Esse acontecimento não representa para o peregrino uma novidade. É um reconhecimento da Igreja, mas para a consciência do peregrino essa relação com os Pastorinhos como figura de uma infância santificada já estava incorporada.
Reforça dentro da instituição Igreja o lugar de Fátima, mas não penso que modifique substancialmente a relação que o peregrino tem com Fátima. Eu diria que essa santidade já está incorporada na compreensão que ele faz de Fátima. É mais uma confirmação do que é vivido pelo peregrino do que um acontecimento novo.
AE – O olhar da Igreja para as crianças não muda por causa da canonização?
AT – Muda desde o início do fenómeno de Fátima. É uma das singularidades, embora não seja de facto único. É um aspeto que não pode ser desligado da sua singularidade, esta ideia de que as crianças têm, na própria experiência cristã, uma palavra a dizer, que podem ser testemunhas de algo. Assinala-se, novamente, a dimensão fortemente inclusiva do acontecimento cristão e que tem um particular testemunho em Fátima.
É intergeracional, interclassista. Estando com todos, nas margens e no centro, é um local que se torna um espaço de grande convergência.
AE – Como perceber o aumento da procura das relíquias dos Pastorinhos nesta transformação das práticas devocionais de que fala?
AT – A materialidade do sagrado é algo que faz parte estrutural da vivência religiosa. Em todos os fenómenos religiosos os antropólogos dão muita importância a essas dimensões.
Uma sociedade que fez um percurso de escolarização, o acesso alargado a uma literacia, mais alargada a uma cultura, por vezes conduz a um olhar para a religião que menoriza essa dimensão do sensível na experiência religiosa. Quando as pessoas têm a possibilidade de viver isso a partir dessa dimensão, quando as instituições religiosas e os espaços de acolhimento não censuram, as pessoas tendem a valorizar.
O que é próprio da experiência religiosa é a capacidade simbólica de, naquilo que está mais próximo, ver uma janela para uma transcendência que ultrapassa aquela mediação. Mas aquela mediação é necessária. No comportamento religioso a procura de mediações, de proximidade, são instrumentos que permitem abrir a experiência para algo que esteja para além do próprio objeto, e isso é tão estrutural que penso nunca foi dispensado verdadeiramente em Fátima.
O facto de haver esta consagração dos Pastorinhos e do seu lugar como exemplo de santidade na Igreja vai favorecer esta reaproximação à dimensão mais material do religioso.
Se observarmos as práticas das pessoas, não tanto no recinto do santuário, mas na zona da história dos Pastorinhos, as práticas mostram a procura em tocar as coisas, aproximar-se. O toque quase curativo, terapêutico, é algo de muito estrutural na experiência religiosa. Estará, em muitos casos, em tensão com aspetos do cristianismo, mas o cristianismo incorporou-se historicamente nas nossas sociedades criando compromissos com estas dimensões de um religioso mais naturalista mas que, julgo, nunca foi verdadeiramente dispensado e que em Fátima sempre esteve presente, mais ou menos valorizado pelas estratégias do Santuário.
AE – O fenómeno Fátima explica-se também nos caminhos até ao Santuário?
AT – Penso que mais neste momento. Uma das diferenças que podemos encontrar sobre as práticas em torno de Fátima, nas últimas décadas, tem a ver com essa valorização do caminho, da experiência da peregrinação como um caminho, de acolhimento em lugares.
Assistimos a um crescimento da prática deste caminho não só como via penitencial, mas de descoberta de si, de fruição do próprio meio. São tópicos que a peregrinação contemporânea tem vindo a incorporar. Isso é mais evidente em peregrinações que foram fortemente secularizadas como é o caso de Santiago de Compostela. Mas estes elementos passam pela construção de uma mística do próprio caminho. É algo que está neste momento a ser desenvolvido em algumas sensibilidades peregrinas no contexto de Fátima.
AE – O próprio caminho que leva a Fátima mostra a transversalidade de Fátima extra Igreja católica…
AT – Conhecemos ainda mal o impacto de Fátima noutras identidades religiosas. Em Portugal temos uma escassa presença de minorias religiosas. Há uma maioria católica muito enraizada culturalmente. Não é fácil fazer uma avaliação desse processo.
Sabemos, no entanto, que internacionalmente tem crescido a atividade inter-religiosa em alguns santuários cristãos, budistas, hindus. A ideia de que um lugar sagrado pode ser um lugar de encontro para experiências espirituais que se enraízam em tradições religiosas diferentes é algo que nos últimos anos se tem afirmado.
Fátima ainda é um espaço pouco conhecido sobre esse ponto de vista. Não podemos perder de vista que algumas sensibilidades dentro do espaço católico resistem bastante a essa apropriação de Fátima por parte de outras tradições religiosas. Essa dimensão mais ecuménica ou inter-religiosa é uma dimensão que não dialoga bem com algumas sensibilidades católicas em torno de Fátima.
Mas tendo em conta a capacidade plástica de Fátima, de acompanhar todas as grandes transformações que a nossa contemporaneidade vai conhecendo, não tenho dúvidas de que – sendo essa claramente uma das transformações a acontecer a nível internacional – a dimensão global pode vir a aprofundar-se no futuro, não só dentro de uma tradição religiosa mas como espaços de comunicação entre tradições religiosas diversas.
AE – Pensemos numa viragem de Fátima a Oriente. O bispo emérito de Hong Kong, o cardeal John Tong, vem presidir à peregrinação de maio. Que desafios se abrem ao Santuário e à sua mensagem com este mundo oriental?
AT – O cristianismo hoje vive um certo incremento, em particular, a Igreja Católica, encontra outra geografia que não a tradicional. Há vários espaços onde temos comunidades com vitalidade, que, em todo o caso, a capacidade de encontrar lugares simbólicos, lugares que permitam fortalecer essas identidades, não é de facto um caminho fácil.
Nesse caminho global que neste momento caracteriza Fátima, facilmente um grande santuário, fortemente articulado com alguns aspetos centrais com a espiritualidade católica, a devoção mariana, pode facilmente, num contexto em que as pessoas vivem globalmente em relação a outras geografias do catolicismo contemporâneo, tornar-se uma peça muito importante. Esse tem sido, tanto quanto sei, um dos terrenos fortes de desenvolvimento das peregrinações internacionais em Fátima.
Mas temos de saber interpretar este fenómeno segundo as práticas de mobilidade em termos gerais no nosso planeta. Boa parte da mobilidade turística tem como origem o oriente. Estes povos estão a incorporar no seu quotidiano e projetos de vida com muito mais facilidade o objetivo da deslocação, o conhecimento de outros lugares. E é natural fazer das nossas deslocações multifuncionais: quando nos deslocamos é para mais do que uma coisa.
O que acontece, nessas circunstâncias, é que as pessoas associam a visita a Fátima. É interessante perceber este lugar como um que não se dispensa na construção da viagem, na construção do próprio imaginário da viagem, que é algo essencial na cultura contemporânea. Uma reflexão a fazer são as transações que hoje se estabelecem entre a prática turística e de peregrinação.
Há uns anos víamos isto como uma degeneração da prática de peregrinação, mas parece-me ser uma observação pouco pertinente e pouco eficaz. Temos de compreender o que é a natureza da deslocação hoje, que recursos envolve. Uma deslocação da Coreia a Fátima envolve recursos que vai mobilizar serviços com, em muitos casos, múltiplas ofertas. A prática da peregrinação hoje tem de ser pensada nesta lógica.
Fazer uma pastoral do turismo implica, nos nossos dias, ter a consciência de que as práticas turísticas das pessoas se podem associar a práticas de peregrinação e estas se podem relacionar com práticas turísticas. As pessoas não são outras, são as mesmas que fazem uma coisa e outra. Enquanto o fazem, poderiam merecer o cuidado das Igrejas, pensando nelas como cristãos que estão nesse contexto de mobilidade e podem ser acolhidas e integradas em contextos diferentes, não apenas num contexto de santuário.
As que visitam Fátima, visitam depois outros locais, fazem um circuito e, porventura, para além de Fátima, não encontrarão um acolhimento cristão em qualquer outro lugar. Esta articulação parece-se importante do ponto de vista pastoral.
AE – Podemos perceber uma procura semelhante à que aconteceu há 100 anos com os cidadãos de Leste?
AT – Pode haver alguma comparação, porque encontramos também a Oriente um cristianismo de resistência. Há a possibilidade de ancorar a sua identidade num lugar que dá essa liberdade. Pode haver uma similitude, mesmo em contextos diferentes, porque mesmo a Oriente encontramos contextos de liberdade religiosa bastante distintos.
AE – Fátima é esse lugar que se tem adaptado aos novos tempos. Como atualizar o apelo primeiro da oração, penitência e conversão?
AT – Estou convicto de que a atualização acontece mais pela via das práticas dos peregrinos do que por via de uma estratégia do santuário. Aquilo que tem tornado, a meu ver, o santuário como esse lugar de forte capacidade de resposta à mudança relaciona-se com o facto de, embora seja um santuário com uma estrutura eclesiástica e de integração eclesial, com uma lógica católica na sua organização, permanece como um espaço muito aberto às pessoas na sua individualidade, na sua biografia própria.
Quando em contextos diversos falo sobre Fátima, contextos em que depois as pessoas tomam a palavra, acontece percebermos que o seu discurso é imediatamente uma biografia. Toda a gente tem uma qualquer história sobre Fátima. É isso que dá a vitalidade e a capacidade de acompanhar a vida. Na medida em que a estrutura se abre claramente a essa complexidade, não tem como a política a compactação e redução da experiência, um perfil único, com uma forte vigilância sobre o que deve ou não ser um peregrino, sobre o que pode ele encontrar em Fátima, na medida em que uma estrutura se abre dessa maneira à vida das pessoas, o que vai acontecer é que as pessoas constroem um santuário.
Uma das coisas que acho interessante perceber em Fátima é que o santuário só em parte é construído pela própria instituição. Grande parte da sua construção, do que nós chamamos o santuário de Fátima, é feita pelos próprios peregrinos com as suas histórias, com o que transportam nas suas orações e práticas. Essa vida é que constrói o santuário. Se este santuário tivesse um perfil de organização diferente, que reduzisse a capacidade de acolher esta diversidade, passaria a ter dificuldades em acompanhar estas transformações.
AE – O próximo centenário terá de ser construído dessa forma?
AT – Não tenho a capacidade de dizer se o santuário vai continuar a ser isto. Como cientista social, tenho de dizer que há santuários que morreram. Que tiveram uma enorme vitalidade durante muito tempo – até na história portuguesa: pensemos, por exemplo, no santuário da Nazaré que teve uma importância regional num período histórico alargado.
Os santuários têm a sua história e vida e alguns morrem. Não vou fazer o exercício de prognóstico sobre os próximos 100 anos. Parece-me claro, na medida em que Fátima mantiver esta capacidade de se abrir à construção do próprio peregrino, de ser um santuário construído em parte pelo peregrino, que terá condições de futuro, porque lhe dará uma capacidade de ir incorporando no próprio santuário as transformações que acompanham a vida das pessoas.
Talvez o aspeto que se possa vir a tornar mais difícil para experiência do santuário, em especial como experiência de identificação católica, poderá ser perceber-se a partir da identidade religiosa do peregrino que se emancipa de qualquer regime de pertença. Isso tem acontecido, apesar de não estarmos ainda em condições de perceber que consequência pode haver e o que o nível de frequência pode vir a revelar.
Encontramos essa tendência nalguns lugares de peregrinação no mundo, no fundo, a possibilidade de alguém viver a sua identidade religiosa já não a partir do que é tradicional – que é a inscrição numa comunidade e a sua vivência religiosa a partir de uma pertença -, passarmos a ter uma vivência religiosa que tem como escala o longo curso da sua vida, onde alguns momentos fortes do ponto de vista religioso, como uma peregrinação, vão ser os grandes articuladores dessa identidade, mas num forte distanciamento a outras dinâmicas comunitárias.
Embora se encontre em Fátima, percebemos ainda uma forte articulação com os dinamismos mais estruturais do catolicismo na sociedade portuguesa. Mas se se aprofundar esta tendência, diria que ficará muito difícil o estabelecimento de qualquer correlação entre a dinâmica de Fátima e as outras lógicas pastorais da Igreja Católica. A relação com Fátima autonomiza-se na identidade dos peregrinos.
AE – É um quadro que se estende para além daquilo que o padre Tolentino Mendonça reflete sobre a crise do ser e a crise do pertencer…
AT – É uma concretização. A dimensão da crença que pode atualizar-se na visita periódica ao santuário não se articula com uma dimensão de pertença. Esta possibilidade de uma disjunção entre crer e pertencer, um fenómeno que analisamos na sociologia da religião desde os anos 80 do século XX, é uma transformação de médio curso nas nossas sociedades. Em relação ao santuário pode ter esta consequência.