Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve
Há muitas coisas, aspetos da nossa vida, em relação às quais só devemos falar depois de passamos por elas. Eu penso que é tudo assim. Mas digo quase tudo, para que os mais puritanos e picuinhas não comecem já a referir aspetos em que se pode falar sem ter de vivenciá-los.
Há uma diferença entre o existir e o viver. No viver procuramos alegrias, consolos, partilhas amáveis, sorrisos, confortos, enfim vivemos e procuramos dar vida a quem nos rodeia. No existir damos para sobreviver, sem conforto, com medo, procurando ter forças onde já só há cansaço, procurando ter esperança onde habita o vazio da ausência e da morte.
Desde o dia 29 de dezembro que cerca de 90 pessoas só existem; não conseguem viver. No Lar de Santa Maria, em Tavira, desde que foi detetado um surto de COVID-19, já só há espaço para existir, porque a vida ficou na pausa. Aqui, nesta realidade e neste momento, existir significa cuidar ao máximo de todos, para que ninguém vá para o hospital, com a incerteza do regresso. Aqui, existir significa deixar as férias interrompidas, adiadas ou esquecidas, no cansaço dos dias, para cuidar dos “seus”, de “todos”, mesmo sabendo que há grande probabilidade de ficar infetados, como os já estão aqueles de quem cuidam e os seus colegas. Aqui, existir significa cuidar do outro, mesmo que ele não nos consiga ver, mesmo que já não saiba quem somos ou o que estamos a fazer, mas cuidar, somente cuidar, mesmo que seja noite dentro ou no pino do sol. Aqui, existir significa dar tudo – mentalmente, animicamente, fisicamente -, para que ninguém saia para não mais voltar, porque cada um que parte sem regresso é uma cicatriz de fracasso na nossa alma. Aqui, significa permanecer, ficar juntos desses “seus”, “nossos” que agora, nesta nova fronteira que nunca desejamos ou sonhámos, nos faz correr riscos, mas nos faz descobrir energias que não sabíamos ter, para cuidar, cuidar, cuidar, mesmo que possa ser a última coisa que façamos nesta vida. Aqui, significa ser solidário, leal, ser o próximo do próximo, que é um eu, um tu, um eles, um nós…
Primeiro existimos e depois vivemos. Podemos existir sem viver, mas não podemos viver sem existir. Por isso, a todos aqueles que vivem, mas que nunca existiram num ambiente COVID, desejo felicidades, mesmo muitas e sinceras. Todavia, antes peço que não defendam todas as teorias e conspirações possíveis: das máscaras, do álcool gel, da manipulação política, da supremacia chinesa, do controlo da população pelo medo, de que não vale a pena o confinamento, de que sob o signo da verdade a pandemia COVID-19 é uma “fantochada” para nos dominar através do estado de emergência.
Fantochada e manipulação política é criticamos o Serviço Nacional de Saúde, sem conhecer e reconhecer verdadeiramente os médicos e enfermeiras que estão presentes constantemente junto dos que estão doentes ou que necessitam de vacinas, tantas vezes semanas seguidas sem um único dia de descanso. Eu conheço médicos e enfermeiros assim. Conheço, digo-o, porque vejo as suas ações, reflexo do que são no seu interior e de tudo o que são capazes, porque limito-me a falar com eles sem que lhes veja as feições, escondidas pelos equipamentos de proteção, que apenas nos deixam ver atrás dos óculos, os olhos cansados. Eles já existem há muito tempo e vão continuam a existir por longo tempo no ambiente COVID, para que nós um dia possamos viver num ambiente normal. E por mais paradoxal que possa ser, eles vivem, porque se dão aos outros e, nessa entrega, encontram a esperança dos sorrisos. Nas pequenas batalhas vencidas, estão a procurar ganhar a guerra para todos nós e isso é viver, porque dando a vida ressuscitam a cada respiração mais serena, a cada gole de comida que conseguem fazer engolir, a cada alta que celebram.
O que nos compete, enquanto seres humanos que abandonam o mais mesquinho interesse partidário e politiqueiro que possamos ter, desejando colocar à frente de tudo a vida humana, é ajudá-los fazendo a nossa parte. O cristão é aquele que procura a esperança, mesmo onde só espreita o vazio da morte e da ausência. É aquele que quer existir e viver e fazê-lo com e para os outros. É aquele que escuta e vê com o coração e que deseja que todos os filhos do seu Pai, possam encontrar alegrias, consolos, partilhas amáveis, sorrisos, confortos.