Evangelho de Judas não implica nenhuma revolução

O antigo manuscrito copta que contém a única cópia do evangelho de Judas é hoje apresentado em Washington, EUA, prometendo “revolucionar” as convicções sobre Cristo e a Igreja. Para os especialistas católicos, estamos na presença de um documento importante para perceber a Igreja gnóstica dos séculos II-IV e o seu contexto cultural, mas não para a história de Jesus. O Pe. Joaquim Carreira das Neves, exegeta português, disse ontem na UCP que estamos na presença de um caso em que “a montanha vai parir um rato”. “Estes textos estiveram escondidos nas areias do deserto ao longo de séculos e são essenciais ara compreender uma Igreja (a gnóstica) que foi importante nos primeiros séculos do Cristianismo”, disse este especialista, explicando que documentos como o evangelho de Judas têm apenas uma “importância cultural” relativamente a uma comunidade com textos e regras próprias que se desenvolveu à margem da grande Igreja, aquela que hoje conhecemos. Também o Pe. Claudio Bottini, decano da Faculdade de Arqueologia e Ciências Bíblicas do Studium Biblicum Franciscanum (Sbf), refere que “este manuscrito não vai reabrir o debate sobre o Cristianismo e as suas origens”. Em declarações à agência italiana Sir, este especialista defende que é preciso aguardar pelo texto para perceber “que nova luz irá projectar sobre a figura de Judas que, de facto, deve ter colocado muitos problemas à comunidade apostólica”. O evangelho apócrifo de Judas é, por isso e acima de tudo, mais um caso de sucesso mediático. A publicação do papiro, com 26 páginas, data do séc. IV ( credita-se que é a tradução de outro, do ano 187) já gerou uma espécie de “campanha de reabilitação” do discípulo que, segundo os Evangelhos Canónicos, entregou Jesus aos judeus. A «Maecenas Foundation for Ancient Art» de Basileia (Suíça) e a revista «National Geografic» publicam o conteúdo de um manuscrito do século I, com o evangelho apócrifo de Judas. Deste escrito, tinha-se notícia, até agora, só por Santo Irineu, bispo do século II que denunciava as heresias nele contidas. Segundo estas fontes, o evangelho apócrifo de Judas devia ser um texto grego de origem gnóstica, escrito pela seita dos cainitas, em meados do século II. Esta seita dava um valor positivo a todas as figuras negativas das escrituras judaicas e cristãs, como a serpente tentadora, Caim (daí o seu nome), Esaú e Judas. Messianismo e traição A questão de fundo tem a ver, neste caso, com o entendimento do Messinanismo de Jesus. Como explica o exegeta Pe. Joaquim Carreira das Neves, o tema central da sua pregação e acção – Reino de Deus –, apresentado nos Evangelhos Sinópticos, evoca os anseios político-religiosos dos judeus. Desde os velhos tempos de antes do exílio da Babilónia (séc. VI a. C.) que os judeus não viviam em independência política. Tinham estado sujeitos a babilónios, persas, gregos e romanos. A pregação do novo Profeta de Nazaré, com o seu poder taumatúrgico e com a sua doutrina “revolucionária” sobre o Sábado, Templo, Jejum, perdão dos pecados, julgamento final, traz uma primavera de vida a todos os doentes, marginalizados e pecadores. O velho messianismo dos tempos de David e dos profetas regressa. Nem admira que o povo O evoque com o título de “Filho de David”. Esta pregação de Jesus sobre a realeza (reino, reinado, soberania) é deveras ambígua. E Jesus nunca expôs de maneira clara o que deseja significar com semelhante doutrina. As suas parábolas – originalidade de Jesus – referem continuamente o “Reino de Deus” (Mc 4, 16. 30; Mt 13, 14. 31. 33. 44. 45. 47). E a primeira palavra que Jesus pronuncia versa precisamente o Reino: “Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: ‘Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho’” (Mc 1, 14-15 e par.). O povo simples, os políticos religiosos, os herodianos e os seus próprios discípulos mais íntimos, a começar pelos Doze, pensaram que, finalmente, o Reino teocrático de David e Salomão iria ter lugar por obra e graça daquele Profeta e taumaturgo (Mc 8, 11 e par.; 8, 32-33 e par.; 9, 33-37; 10, 35-45). Neste contexto, Judas aprece como um amigo íntimo e de toda a confiança de Jesus – é o ecónomo da comunidade. Se Judas entrega Jesus ao Sinédrio não foi por causa do dinheiro, mas para testar Jesus na sua política religiosa. Judas era um judeu de Iscariotes e não um galileu. Esperava o Reino de Deus e convenceu-se – como os demais – que Jesus, com todo o seu poder de palavra e acção, traria, finalmente, o Reino tão desejado a Israel. Mas aconteceu que Jesus, na segunda parte da sua pregação na Galileia, deixa de operar milagres, pregar em parábolas, para se dirigir de uma maneira especial aos discípulos por causa das falsas ideias do seu messianismo. Nesta viragem é natural que o amigo Judas, desencantado com Jesus, o entregue ao Sinédrio para que Jesus se resolva uma vez por todas a desencadear o Reino de maneira apocalíptica e apoteótica. E nada melhor do que aproveitar a estadia em Jerusalém, nas vésperas da Páscoa, para que a sua manobra política resulte. Mas não resultou. Jesus foi mesmo para a Cruz. Judas, desesperado, não aguentou a pressão e suicidou-se. Semelhante atitude foi aproveitada pelos evangelistas como exemplo para os cristãos a não se deixarem sucumbir à tentação, transformando, assim, Judas em “traidor” e “avarento”.

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