Dias depois de uma maioria de juízes do Tribunal Constitucional ter decidido chumbar a última versão da lei da eutanásia, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
O acórdão do Tribunal Constitucional decidiu-se pela inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 2.º, relacionada com a definição de sofrimento de grande intensidade; e refere, por 59 vezes, a palavra “paliativos”. Um dos juízes recorda que a rede de cuidados paliativos não cobre as necessidades de todos aqueles que deles pretendem beneficiar. É um alerta necessário?
Muito necessário: quando pensamos em sofrimento pensamos em algo muito difícil de definir – uma vez que o sofrimento é aquele que o que a pessoa define como sendo o sofrimento -, quando falamos em sofrimento insuportável, estamos a falar de algo que é muito individual. Mas aqui estamos, precisamente, a falar do sofrimento que decorre de uma doença, de uma doença grave, de uma doença que afeta a capacidade da pessoa. Se temos uma especialidade, na área da saúde, que tem como objetivo tratar e prevenir sofrimento, que se chama Cuidados Paliativos, e essa especialidade não está acessível à enorme maioria das pessoas que precisa destes cuidados, então estamos a falar de um problema gravíssimo, gravíssimo, de acesso a cuidados de saúde que se vive no nosso país.
Atendendo a isto, e tendo este este cenário como contexto, pensar numa lei que vai oferecer às pessoas a possibilidade de antecipar a morte, por causa de um sofrimento considerado intolerável, quando esse mesmo sofrimento pode ser causado por ausência de cuidados de saúde que o mesmo país não garante, estamos a falar de algo completamente inaceitável.
A lei que foi chumbada previa que o médico orientador prestasse informação e esclarecimento tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos Cuidados Paliativos. Numa questão tão delicada, basta informar dos cuidados disponíveis, não estando os mesmos assegurados, dependendo das disponibilidades do momento?
Essa é uma pergunta excelente e é uma enorme preocupação para quem trabalha todos os dias nesta área, a lidar quer com doentes em situação paliativa, com necessidades de paliativos, quer com profissionais de saúde que, não sendo da área de cuidados paliativos, manifestam grande desconhecimento, muitas vezes.
Explicar o acesso à possibilidade de Cuidados Paliativos deve implicar um conhecimento sobre aquilo que se está a oferecer e a possibilidade que se está a oferecer. Infelizmente, esse conhecimento, esse à vontade para falar daquilo que é esta área de cuidados, não está garantido.
Outra observação tem a ver com o facto de não se exigir uma formação específica em cuidados paliativos nem ao médico orientador nem ao médico especialista. É mais um sinal da desvalorização desta área, por quem legisla?
Entendo que o próprio legislador pode ter falta de conhecimento e de aprofundamento, um maior conhecimento, sobre o que se passa na realidade, do que são exatamente Cuidados Paliativos, daquilo que são ações e intervenções específicas desta área e daquilo que são ações paliativas: uma abordagem positiva, que deve estar garantida em qualquer serviço de saúde, pois em qualquer contexto dos cuidados de saúde, existem doentes com necessidades a este nível, doentes com a necessidade de alívio de sofrimento. Esta área de cuidados, como já disse, está, não está acessível ao nível de especialidade, ou seja, o acesso a Cuidados Paliativos especializados está muito condicionado e também está condicionado o acesso a uma abordagem paliativa, ou seja, uma abordagem de qualquer profissional de saúde ao nível do alívio de sofrimento.
A formação de base para todos os profissionais de saúde em Cuidados Paliativos não está garantida. É muito recente. É muito recente que os cursos de Medicina, os cursos de Enfermagem e os cursos de Psicologia tenham nos seus currículos esta área. E nem sequer é garantido que todos os cursos já o tenham.
Estamos a falar de um atraso enorme ao nível do desenvolvimento desta área de cuidados no nosso país. Estamos a falar de um atraso que não é compreensível, quando temos uma Lei de Bases de Cuidados Paliativos desde 2012; quando temos vários planos estratégicos que acabaram por ser desenhados e acabam por falhar na implementação; quando temos um não investimento que se perpetua ao longo de vários anos e de várias legislaturas.
Essa falta de acesso está a deixar muita gente de fora? Quantas pessoas estima que estariam necessitados de Cuidados Paliativos em Portugal?
Estima-se que cerca de 100 mil pessoas, todos os anos, precisem de acesso a Cuidados Paliativos especializados em Portugal. Estima se que 8 mil crianças precisem, todos os anos, de acesso a Cuidados Paliativos pediátricos. Apenas cerca de 10% destas crianças têm acesso; a nível dos adultos, cerca de 30% destas pessoas têm acesso.
Estamos a falar de uma percentagem que se mantém e muito baixa, ao longo de muitos anos, portanto, precisamos urgentemente que os que têm poder político e decisor, a nível dos cuidados de saúde, olhe para isto como uma verdadeira prioridade.
Sem o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, sem o desenvolvimento deste acesso, pomos em causa o próprio Serviço Nacional de Saúde, que, não respondendo adequadamente a estes doentes, responde de uma forma que desperdiça e continua a não colocar no centro aquilo que são as verdadeiras necessidades dos doentes.
Faz sentido legislar a antecipação da morte regulada pelo Estado, num cenário como aquele de que temos vindo a falar?
O que a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos tem reiterado é que, de facto, estamos a inverter prioridades. Mesmo que a ideia da legislação ao nível da eutanásia seja algo importante e que deva ser debatido, neste momento não há, de todo, condições no país para isso, tendo em conta o que acabamos de falar, a nível do acesso a cuidados de saúde, e tendo em conta até aquilo que são os números conhecidos e as dificuldades a nível dos cuidados de saúde, no geral.
Temos problemas graves ao nível da saúde, temos problemas graves a nível social, temos problemas graves a nível de condições para que as pessoas possam viver de uma forma positiva a sua situação de doença ou a situação de dependência. Sabemos bem que ,a nível de cuidadores informais, aquilo que são as condições para as pessoas poderem cuidar e poderem receber os cuidados, quer do ponto de vista do cuidador informal, quer do ponto de vista do cuidador formal, o nosso país tem um atraso grande a esse nível.
Precisamos de olhar para estas áreas como verdadeiras prioridades. Há um país que não trata bem ou que não tem as condições para tratar bem as pessoas vulneráveis e as pessoas que estão numa situação de vulnerabilidade – porque essa situação de vulnerabilidade é algo que nos atinge a qualquer momento, a todos e a qualquer um de nós, num momento inesperado da nossa vida. Precisamos de pensar nisto como um problema de todos.
É um problema que devemos ter como prioritário, a nível de respostas que precisam de ser criadas e a nível daquilo que é a resposta da saúde. Tem de haver uma preocupação diferente em relação aos Cuidados Paliativos.
Esse quadro de evidente insuficiência de cuidados paliativos agrava o panorama de indeterminação, na medida em que torna menos fiável a afirmação da vontade, o que, por sua vez, agrava as exigências de certeza das condições a que essa vontade se dirige?
O aspeto da vontade e da autonomia do doente, o melhor interesse em colocar o doente no centro, a sua autodeterminação, tem de implicar uma participação do doente ao longo de todo o processo de saúde e todo o processo de doença. Ao longo de todo um processo de decisão que é preciso ter quando é decidido fazer um tratamento ou não o fazer, saber as consequências de o fazer ou de não o fazer, tendo um consentimento informado a cada momento.
Está demonstrado que o acompanhamento por uma equipa especializada em Cuidados Paliativos, ao longo do processo de doença, traz muito mais possibilidade ao doente de ter acesso a maior e melhor informação, que lhe garanta a possibilidade de participar neste processo de forma muito mais ativa e muito mais autodeterminada.
A escolha do momento de morte não é a única escolha que importa. Parece que, de repente, é a única forma da pessoa ser autodeterminada. Esta autodeterminação tem de ser garantida e deve ser uma preocupação de todos os profissionais de saúde ao longo de todo o processo.
Um doente que manifesta o desejo de antecipar a sua morte é por si só, um critério de alta complexidade em Cuidados Paliativos. Um doente que refere o desejo de morte, ou o desejo de antecipar a morte, é um doente que está numa situação de sofrimento intenso, numa situação de sofrimento que precisa de ser abordada e que carece de uma intervenção altamente especializada.
O debate sobre a autonomia e a liberdade, por estar demasiado centrado no momento da morte, esquece o processo da doença?
Sim, de todo. E tem sido uma enorme falha ao longo de todos estes anos em que esta questão tem vindo a lume. Estamos a debater este tema há muito tempo, mas perdemos oportunidade, em quase todos os momentos, de debater aquilo que é o exercício de autonomia do doente e de como ele pode estar condicionado quando, por exemplo, a informação não é tão clara ou acessível, ou, quando não tem participação ativa nas decisões.
Por outro lado, há as questões da obstinação terapêutica, ou seja, aqueles tratamentos que não trazendo benefício trazem muito mais sofrimento. Cada intervenção que tenha como objetivo prolongar processos no tempo, sem que se tenha em conta a qualidade do tempo, a dignidade e a qualidade de vida, o bem-estar, o conforto e a vontade do doente, configuram, do ponto de vista deontológico, algo que é condenável.
E algumas experiências das pessoas estão muito ligadas a isso…
Aliás, muitas vezes, quando converso sobre este tema da eutanásia e sobre a ideia de a pessoa poder escolher o momento para antecipar a morte, muitos dizem-se a favor porque não querem que as pessoas sofram de uma forma desproporcionada ou que fiquem numa situação de sofrimento prolongado por meios artificiais. E quando temos oportunidade de explicar que isso só acontece porque há, de facto, uma dificuldade do ponto de vista da prestação de cuidados de saúde, a nível de suspensão de medidas fúteis, a nível das decisões éticas sobre os procedimentos e há, também, a dificuldade em que o doente participe no processo de decisão e que possa antecipar decisões para quando não estiver em condições de expressar a sua vontade.
E, portanto, temos mecanismos legais, como o testamento vital que nos permite exercer essa vontade. No nosso país já temos muitas ferramentas e a oportunidade de lidar muito melhor com esta fase da vida do que aquilo que acontece na realidade.
O que é que está a falhar? Está a falhar, por um lado, a formação nesta área, do ponto de vista dos próprios profissionais de saúde, a iliteracia, que não é só a nível da sociedade em geral, mas, também, dentro dos próprios profissionais de saúde. Precisamos de debater muito mais estas questões sem ir para o lugar de discussão do ser a favor e contra, o que, no fundo, depois não traz benefício nenhum para a própria sociedade.
Do ponto de vista mais político. Como entende que a associação não tenha sido ouvida pelos partidos que tiveram a iniciativa legislativa sobre a lei da eutanásia?
Devia ter havido a preocupação, de quem quer legislar sobre esta área, em ouvir os profissionais que lidam com doentes em situação de sofrimento. Seria importante ouvir esses profissionais de cuidados paliativos e perceber porque dizem que este não é o momento e que esta lei é completamente extemporânea. No fundo não acho compreensível não termos sido ouvidos. Justifico o facto que ninguém ter procurado saber a nossa perspetiva sobre o assunto como não querer conhecer os argumentos que não sejam a favor deste projeto legislativo. Quem está a levar a cabo este projeto legislativo está a fazê-lo com uma boa intenção, a de melhorar algo na sociedade. Não vejo de outra forma. No entanto, parece me que ao querermos legislar sobre um aspeto tão sensível, e não é por acaso que foi reprovado mais uma vez pelo Tribunal Constitucional, é porque realmente é muito difícil.
Estamos a falar de algo de que precisamos de conhecer muito mais a fundo e saber muito mais porque que se trata de algo completamente extemporâneo e muito perverso, tendo em conta o contexto do nosso país a nível de cuidados de saúde e sociais oferecidos a quem está a passar pelo momento mais difícil da sua vida marcado por uma doença grave.
Já percebemos que os partidos promotores da legislação vão tentar avançar rapidamente com o processo, resolvendo aquilo que foi chamado a atenção pelo Tribunal Constitucional. Há outros partidos que insistem na realização do referendo. Isso poderia ser um caminho? Colocar a decisão nas mãos dos eleitores? Ou há, também, falta de esclarecimento global sobre estas matérias?
O referendo poderia trazer a possibilidade de mais tempo de debate. Essa seria a vantagem do referendo. No fundo, não acho que seja necessário o referendo para que o debate volte a estar em cima da mesa e para que reflita mais sobre o assunto.
Ainda assim, parece me que a energia dos decisores e dos partidos políticos deveria estar, neste momento, muito mais focada em garantir cuidados de saúde adequados para as pessoas e garantir que, de facto, o sofrimento seja prevenido e tratado.
Portanto é um cenário tão, tão pouco justo para quem está doente que, não tendo acesso a cuidados de saúde que precisa tenha, possa passar a ter acesso, a antecipar a morte por causa, justificando esse pedido com o sofrimento intolerável. Sofrimento esse que nunca foi tratado, mas pode ser o motivo para a morte. Acho que, de facto, não é o país que nós queremos, nem é o país pelo qual devamos lutar.
Falamos aqui das insuficiências ao nível dos cuidados paliativos. E o próprio ministro da Saúde, Manuel Pizarro, admitiu no final do ano passado insuficiências em matéria de cuidados paliativos e falou da necessidade de alargar a rede. De lá para cá, já encontrou alguns sinais concretos de investimento e de prioridade nos cuidados paliativos dentro do Serviço Nacional de Saúde.
De facto, quando ouvimos senhor ministro da Saúde, fizemos um comunicado alertando para vários várias questões. E é muito importante que fique bem claro que o investimento em cuidados paliativos não é alargar a cobertura de camas de internamento. Não é disso que estamos a falar. Essa, porventura, será uma parte do investimento necessário.
O mais importante é o desenvolvimento de competências pelos profissionais e criar condições para que as equipas de cuidados paliativos tenham a possibilidade de chegar aos doentes. Portanto, as condições é terem profissionais de saúde com competência na área. Estamos a falar de um investimento em profissionais que têm que chegar aos doentes onde eles estão.
Portanto, quando falamos em investimento, falamos, do ponto de vista estratégico, de algo muito maior do que apenas o investimento em construir unidades ou criar camas. Porque não é disso que se trata. Trata se de algo muito mais complexo e que precisa de uma intervenção estratégica urgente. Portanto, não se resolve com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ou com algum investimento, de todo. Resolve se com uma estratégia muito mais bem pensada.
E essa estratégia não existe?
Sendo que, a cada dois anos, a Comissão Nacional de Cuidados Paliativos faz um plano estratégico que depois, no final desses dois anos, vamos ver aquilo que foi alcançado percebemos que estamos muito aquém daquilo que seria necessário e daquilo que foram os objetivos e isto ser sistemático. Infelizmente não podemos ter uma boa de que as coisas mudem se continuarmos assim. Quero acreditar e quero muito contribuir para, que de facto, essa estratégia seja encontrada e seja posta em prática a bem da saúde das pessoas e bem da saúde do próprio Serviço Nacional de Saúde.