Eucaristia, dar-se para dar

Homilia de D. Jorge ORtiga na celebração da Ceia do Senhor 1 – Eucaristia, doação de Deus “Tomai e comei, isto é o meu corpo, que é para vós”. Expressão máxima de entrega e doação total. A Eucaristia é, por isso, o acontecimento máximo da doação de Deus. Nela, reactualiza-se aquele salto, pelo qual Deus não apenas nos cumula de bens, mas se dá a si mesmo, como fonte de todo o bem. Na Eucaristia torna-se-nos realmente presente o facto de que a graça de Deus não é, simplesmente, um conjunto de favores que não merecemos, mas sim o próprio Deus, presente como corpo, que se nos dá. E é nessa doação de si que nos salva. A libertação dos cativos, anunciada por Isaías, enquanto manifestação do ano da graça, realiza-se, de forma plena e insuperável, na medida em que o próprio Deus, feito cativo dos humanos, se nos entrega até ao fim. E a Eucaristia mais não é do que a presença real dessa entrega. Bento XVI, na Sacramentum Caritatis, diz: “O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3, 16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá «alguma coisa», mas dá-Se a Si mesmo; entrega o Seu corpo e derrama o Seu sangue. Deste modo dá a totalidade da Sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós”. (7) O modo fundamental de acolhimento deste dom é, precisamente, a sua celebração. Celebrar é, para nós, fazer memorial, tornando realmente presente a própria acção de Deus que se entrega por nós; mas é, ao mesmo tempo, celebrar esse dom acolhendo-o como tal, ou seja, reconhecendo que é um dom que nos salva, muito para além de qualquer mérito nosso. Celebrar significa acolher, jubilosamente, esse dom salvífico, pois só ele nos dá a verdadeira vida. E, na medida em que o acolhemos, ele é-nos dado gratuitamente. Celebrar significa, ainda, acolher o facto de que o dom de Deus não é propriedade privada, nem de cada cristão nem da comunidade eclesial, no seu conjunto. O dom de Deus é para ser dado a todos os humanos que o acolham. E se esse dom de Deus é o dom da sua própria vida, então a doação aos outros é a doação da própria vida. Celebrar a eucaristia é comprometer-se a dar a própria vida pelos outros, tal como Deus a dá por nós, em Jesus Cristo. Só assim o dom de Deus será libertador para toda a humanidade. É essa a nossa missão, o nosso serviço aos humanos de todos os tempos, pois fomos enviados a servir e não a ser servidos. Serviço esse que é mais profundo que qualquer servilismo, porque nós fomos enviados a lavar os pés, em nome de Deus, a purificar, não propriamente a subjugar-nos perante os humanos. Por isso, o nosso serviço humilde aos humanos é um serviço à sua salvação, pela graça de Deus: porque “onde há caridade verdadeira, aí habita Deus”. Assim, o serviço aos humanos só faz sentido se for um serviço a Deus ou «serviço divino». É uma Liturgia permanente: a liturgia sacerdotal e profética de quem anuncia a boa nova sem medos, abençoando e denunciando os percursos da humanidade. 2 – A doação na família Coloquemos esta maravilhosa doutrina no âmbito da Família. A Páscoa judaica era celebrada em família, abrindo-se, em casos concretos, a outras famílias. “Procure cada qual um cordeiro por família, um rés para cada casa. Se a família for pequena demais para comer o cordeiro, junte-se ao vizinho mais próximo… (Ex 12, 1-8). O próprio Jesus Cristo quis celebrar a Páscoa com a Sua família, não já a de sangue mas a comunidade dos Apóstolos. Nestes tempos novos, teremos de rever as nossas celebrações e interrogar-nos se, efectivamente, são um encontro de família no conhecimento mútuo e no amor recíproco. O caminho para que isso se experimente passa por motivar as famílias para uma participação familiar onde antes se efectua uma preparação prévia e depois se verifica os compromissos que a Eucaristia deixa na comunidade familiar. Para as famílias cristãs, a participação na Eucaristia não pode ser um mero preceito rigoroso e penoso de cumprir. Deve ser, pelo contrário, um dom que a Igreja oferece à família para que ela seja o que deve ser, ou seja, comunhão de vida entre todos numa abertura aos valores perenes que se vão assimilando no convívio quotidiano. Sim, a Eucaristia é o sacramento que constrói a família e lhe dá consistência e força para que seja fiel aos seus compromissos. Sem ela dificilmente a família consegue ultrapassar as dificuldades e contratempos. É força. É luz norteadora. É coesão entre todos. Enfim, é um dom maravilhoso que todas as famílias devem descobrir. Daí que o domingo com a Eucaristia deveria tornar-se normal na certeza de que ainda ficará muito tempo para outras coisas. Se muitos dizem que a família cristã está em crise, uma das causas poderá ser esta. Não basta, conviver juntos para ser família. É necessária uma energia que congregue no amor e proporcione alimento capaz de retemperar energias e oferecer forças para prosseguir a caminhada. Como seria bom que as nossas famílias acolhessem com alegria quanto nos é referido na primeira leitura: “Esse dia será para vós uma data memorável que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor” (Ex 12, 14). Se a Eucaristia é a força para ser família, ela é também a proposta do caminho a seguir. A família vale pelo amor vivido não nas palavras mas nos actos concretos e a Eucaristia indica-nos que o amor não pode ficar a meio do caminho, contentando-se com algumas atitudes e comportamentos. Amar é comprometer-se a dar tudo, sem reservas e condições. Assim Cristo o fez: “Ele, que amara os Seus que estavam no mundo amou-os até ao fim” (Jo 13, 3). Ir até ao fim, num amor indissolúvel e nos comportamentos de quem não se detém perante as dificuldades mas se oferece, sempre, para ser amor numa auto-doação até às últimas consequências. 3 – Serviço na Família e pelas famílias Também aqui a Eucaristia ensina a interpretar a família como dom e compromisso. Mas, a fantasia do amor de Cristo manifestada no cenáculo, leva-nos mais longe: “Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também (Jo 13, 1-15). Em Jesus Cristo o lavar os pés teve um significado muito realista. Para nós reveste-se doutras propostas dizendo-nos que, seguindo o seu exemplo, teremos de ser servos. A Igreja sempre teve este cartão de identidade; hoje marcará presença na sociedade se ousar acreditar que o seu, único e exclusivo, caminho é o serviço, sempre e em qualquer lugar, dentro da família e no encontro com os contextos mais variados. Importa que cada um pretenda e se empenhe na atitude de ser dom através dum serviço de delicadeza e ternura. Um serviço que nunca pode ser um mero repartir de tarefas mas que deve acontecer nas surpresas que a vida proporciona. Há coisas que parecem pequenas e que se desconsideram como algo sem valor. No amor tudo vale e o que parece pequeno é aquilo que o próximo mais próximo necessita e espera. Pode nem sequer agradecer, mas um gesto de dedicação e doação dá beleza ao quotidiano das famílias. A felicidade na família nem sempre está no ter. Pelo contrário, num mundo de consumismo gerador de tantos problemas, os lares cristãos devem mostrar que a felicidade depende do dar-se nas coisas mais insignificantes do dia a dia. Mais ainda, se parece que se perdeu o sentido da sobriedade e duma vida frugaz onde cada um se contenta com o essencial, teremos de voltar a um estilo de vida mais simples a começar pela educação a dar às crianças. Muitas nascem e caminham longe de qualquer dificuldade. Daí que, mais tarde, se tornem revoltadas e fujam aos contratempos, desistindo de prosseguir a vida como uma luta e nunca como um dado adquirido. Este sentido de solidariedade não humilha mas exalta, não torna menos importantes mas dá a dignidade à vida desde que esteja dotada daquilo que não tem preço e está ao alcance de todos, ou seja, o amor solícito e desinteressado que todos, dentro das capacidades próprias, oferecem. O lavar os pés como atitude de amor serviçal, não passando pela lógica do ter, também considera esta dimensão. Daí que a Eucaristia, como família, nos leve a pensar nas famílias que não usufruem das condições mínimas para uma vida digna. Houve um tempo em que se pensava na famílias necessitadas; hoje parece que se esqueceu este elemento e ignoram-se situações dramáticas e alucinantes de muitos lares. As carências voltam a acontecer, situações de fome proliferam no anonimato e inconsciência; falta de dinheiro para encarar as despesas necessárias com a alimentação, habitação, saúde, escola encontram-se ao lado das nossas casas. Urge voltar a reinventar formas de solidariedade activa pois muitos irmãos nossas reclamam que façamos da Eucaristia fracção e partilha do pão. O desemprego alastra e não descortinamos igualdade de oportunidades para muitos. Há situações que não podem esperar e que não vivem de promessas. A Eucaristia é o dom por excelência. Importa que, acolhendo-o, o tornemos visível através de compromissos de maior solidariedade. Se o dar-se é o grande compromisso, o encontrar soluções para que as lágrimas não se tornem pão de cada dia para muitas famílias é imperativo de consciência. A eucaristia assim o exige. Sé Catedral – Quinta-feira Santa, 20-03-2008 D. Jorge Ortiga, A.P.

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