Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Não é difícil constatar que hoje vivemos a vida de forma vertiginosa e veloz, em contrarrelógio, num ativismo febril, com agendas muito preenchidas, e demasiado voltados para o elevado rendimento, para a produção e a ação, para a resposta a todo o tipo de estímulos e solicitações, o querer tudo rápido e depressa, num automatismo inconsciente e doentio. É o culto atual da velocidade. Toda a gente anda cheia de pressa e tem muito que fazer. Transformámos a vida numa correria louca.
Uma sociedade que não tem tempo é uma sociedade que pensa pouco, reflete pouco, vive mal, é uma sociedade sem densidade humana, cultural, social e espiritual. Deixámos de ter tempo para aquilo que mais nos estrutura e humaniza, a vida familiar serena, a relação com os outros, o cuidar paciente dos outros, a amizade frutuosa e desinteressada, o convívio tranquilo, o prazer da conversa e do diálogo, o silêncio, o estudo curioso e paciente, a criatividade deleitosa, o fruir alegre da vida. Estamos a tornar-nos pessoas mais desumanas, mais superficiais, menos sábias, mais turbulentas e inconsistentes emocionalmente, desidratadas afetivamente, consumidas, mais frágeis e sós. Disse em tempos o Papa Francisco: “O excesso de velocidade coloca-nos numa centrifugadora que nos varre como confetes. A velocidade excessiva pulveriza a vida, não a torna mais intensa. E a sabedoria requer “perda de tempo”. É necessário dedicar tempo – um tempo que não é rentável – com as crianças e com os idosos, pois eles dão-nos outra capacidade de ver a vida”.
Vivemos numa vertigem que nos está a consumir e a devorar a vida. Qual o caminho para sairmos desta vertigem desumanizadora? Dizia o Papa Francisco: “É preciso uma reforma. A prepotência do tempo do relógio deve ser convertida à beleza dos ritmos da vida. Numa sociedade onde os idosos não falam com os jovens, os jovens não falam com os idosos, os adultos não falam com os idosos nem com os jovens, é uma sociedade estéril, sem futuro, uma sociedade que não olha para o horizonte, mas para si mesma. E torna-se sozinha.”
Preocupado com a pobreza existencial destes tempos de culto da velocidade, o romancista Ernesto Sábato diz assim no seu livro Resistir: “O homem não pode manter-se humano a esta velocidade, se viver como um autómato será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão inseparável da vida do homem como a sucessão das estações é inseparável das plantas, ou do nascimento das crianças. Estamos no caminho, mas não a caminhar, estamos num veículo sobre o qual nos movemos incessantemente, como uma grande jangada ou como essas cidades satélites que dizem que haverá. E ninguém anda a passo de homem, por acaso algum de nós caminha devagar? Mas a vertigem não está só no exterior, assimilá-mo-la na nossa mente que não pára de emitir imagens, como se também fizesse zapping; talvez a aceleração tenha chegado ao coração que já lateja num compasso de urgência para que tudo passe rapidamente e não permaneça”.
Há uma pergunta que todos temos de fazer urgentemente: tu corres, serás que andas a viver como devias? Estarás a ocupar o tempo com as coisas certas e a viver uma vida com sentido? Um bom livro que podemos levar para as férias ou ler nos tempos livres é o livro “A Morte de Ivan Ilitch” do escritor russo Liev Tolstói, publicado em 1886. É um livro curto, fácil de ler, é uma novela, para alguns também um conto de educação. Como o próprio título o sugere, o livro conta-nos a morte de um homem chamado Ivan Ilitch, mas sobretudo apresenta-nos a reflexão que este homem faz sobre a vida e sobre a morte desde o momento em que é confrontado com uma doença mortal, que o vai levar a ter dores lancinantes e desesperantes nos últimos meses e dias da sua vida. Mas mais do que as dores físicas, o que o vai consumir e angustiar são sobretudo as dores morais e espirituais ao constatar que não viveu a vida que devia ter vivido. Um bom livro para também nós refletirmos sobre o sentido que estamos a dar à nossa vida.
Ivan Ilitch era um funcionário público, mais concretamente um juiz de instrução, que vai chegar a um lugar de topo na sua carreira, um lugar que sempre almejou para a sua vida. Só lhe interessava viver uma vida cómoda, ter um bom ordenado, ser cumpridor do seu ofício, ter uma vida arrumadinha, sem grandes problemas, sem grandes ondas ou emoções, sem grandes vontades ou aspirações, uma vida dentro dos conformes, sem grandes expectativas, uma vida agradável e confortável, sem grande sofrimento e sacrifício. Gosta, sobretudo, de receber e conviver com pessoas da alta sociedade, talvez pelo estatuto e prestígio que lhe trazem e pela vaidade que lhe permitem ter diante da sociedade.
Do casamento, nasceram alguns filhos, alguns morreram. Com a esposa, depois da paixão inicial, entrou num resfriamento amoroso, com discussões diárias entre marido e mulher. Uma pesada frieza reinava em casa entre ele, a esposa e os filhos. É um pai distante e insípido que não tem laços profundos e afetivos com os filhos. Para evitar enfrentar a penosa e arreliante realidade familiar, passa muito tempo no trabalho ou vai jogar às cartas com os amigos. Na verdade, tinha-se casado mais pelo conforto e estabilidade que isso lhe trazia do que por amor pela mulher e pelos filhos. A esposa retribui: no velório só quer saber como ter uma reforma mais abonada.
No campo das amizades, tem uns amigos da sua repartição com quem joga às cartas e são os únicos amigos que tem. São, acima de tudo, úteis para momentos de distração, evasão e para passar o tempo. Também não são relações muito profundas, nem são grandes amizades. E a prova disso é que quando estes seus amigos recebem a notícia do seu falecimento não se dá um grande estremecimento e uma grande consternação na repartição. Começam logo a pensar quem é que vai ocupar o seu lugar.
Um dia, enquanto está a decorar a nova casa para onde ia viver, tem um pequeno acidente, bateu com um dos lados do corpo. Algo banal, parecia não ter acontecido nada, mas, na verdade, aconteceu. Com o tempo começou a vir uma dor cada vez mais intensa, que se tornou cruciante e insuportável. Recorre a vários médicos e especialistas, sem grandes resultados, percebendo que não tinha cura. Até as drogas duras que tomava deixavam de fazer efeito, só quando um jovem servo lá de casa lhe levanta as pernas é que ele sentia algum alívio. A morte está próxima.
Perante a consciência do seu fim terreno, Ivan Ilitch é sobressaltado por uma pergunta fulminante: será que vivi como devia? O que é que valeu a minha vida? Pelo seu pensamento, faz uma retrospetiva da sua vida e começa a constatar amarga e dolorosamente que se esquivou a viver a vida como ela devia ter sido vivida, só que agora já não tinha tempo para mudar nada, já nada havia a fazer. Uma profunda e tremenda dor moral e espiritual toma conta da sua alma destroçada. A sua vida foi uma vida deslavada, uma sucessão de acontecimentos insossos, viveu uma vida medíocre, desinteressante, foi uma vida pobre e vazia, uma vida sem sentido, uma vida sem qualquer valor, simplesmente para não enfrentar os compromissos, os desconfortos e os desafios que fazem parte da vida. A sua vida foi um desperdício, não a viveu como realmente a devia ter vivido.
Tolstói deixa-nos, assim, um alerta e convida-nos a uma paciente introspeção sobre a forma como andamos a viver. Ilitch já não teve a oportunidade de mudar nada, mas nós ainda temos e podemos corrigir muita coisa, para não nos arrependermos no final da vida. Como é que ando a viver a minha vida? Tem valido a pena viver a vida que tenho vivido? Estarei a viver uma vida com sentido e com valor, sem me esquivar a enfrentá-la com entrega e dedicação, com os seus deveres, obrigações, compromissos, sacrifícios, lutas e aspirações que ela exige? Ou tenho cedido à tentação de viver a vida desenxabida, leve, confortável, pobre e vazia como a viveu Ivan Ilitch?