O padre Jorge Teixeira da Cunha, da Diocese do Porto, é especialista em Teologia Moral e professor na Universidade Católica Portuguesa. Num momento em que se sucedem greves e conflitos envolvendo trabalhadores do Estado e do Governo, procuramos analisar a realidade à luz da Doutrina Social da Igreja, em entrevista conjunta da Agência Ecclesia e da Renascença.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
Foto: Marília Freitas
A função pública está em greve, os professores já ameaçam com novas paralisações, para o final do ano levito, e os enfermeiros prosseguem com a greve cirúrgica, que já levou o governo a recorrer à requisição civil, que os sindicatos contestaram. Como é que tem acompanhado, em concreto, este protesto?
Pessoalmente, tenho acompanhado com a maior atenção, uma vez que se trata de trabalhadores que têm as suas razões para fazerem o que fazem. Do meu ponto de vista pessoal, tenho sempre tendência para me colocar do lado dos trabalhadores, porque se se metem nisso, pacificamente, ordenadamente, é porque têm razões para tal.
Sendo a saúde uma área muito sensível, há quem se interrogue sobre a ética desta greve. Pode haver aqui, de facto, um conflito entre o direito à greve, de uns, e o direito aos cuidados de saúde, de outros?
De acordo, isso é outro nível de leitura. Aí, realmente, a Doutrina Social da Igreja não subscreve muito o que chama “direito à greve”. A greve é uma prerrogativa que os trabalhadores têm, que é irreprimível, mas a greve é sempre uma subversão do Direito, porque é deixar de cumprir aquilo que são as obrigações dos trabalhadores. Portanto, é um direito na medida em que tem um regulamento e não pode ser reprimida para lá de certos pontos, mas uma greve é sempre uma greve, causa incómodos, de toda a maneira.
Do ponto de vista ético, teremos de nos situar no âmbito do funcionamento normal das instituições e creio que aí, o que a Doutrina Social da Igreja tem a dizer, mais imediatamente, é que um Estado Social tem imensas dificuldades em funcionar. Porque num regime democrático, temos dificuldades em nós entendermos sobre as necessidades, sobre os quereres das pessoas.
O que está mal, no fundo, é nós colocarmos o direito à saúde dentro de um universo estatal. O Estado, compete-lhe prover à saúde de todos os cidadãos, mas o exercício normal do direito à saúde e do tratamento da saúde deveria ser, preferencialmente, do âmbito cooperativo. Portanto, a sociedade civil é que é o sujeito do tratamento da saúde das pessoas. Seria no âmbito social e civil que se devia situar isso. O Estado, que funciona como último garante de que todas as pessoas tenham saúde, não deveria ser também, primariamente, o principal prestador de cuidados de saúde.
É disso que vêm estes conflitos insanáveis: o Estado tem de ser para todos os cidadãos, tem de prover para todos. Se se coloca no lugar do empresário, vai encontrar os trabalhadores a funcionarem como tal e a fazer greve contra o Estado, que é o seu empresário. Aí é que está o problema ético, digamos, mais profundo do assunto. Do ponto de vista do universo humanista da Doutrina Social da Igreja.
Aí há um princípio que é o da Subsidiariedade, recordado muitas vezes pela Igreja Católica na sua relação com os vários governos: não sobrepor a iniciativa estatal ao que já é da iniciativa da sociedade civil.
Sim, compete à sociedade com as suas organizações, com os corpos intermédios, prover à saúde. Nós, hoje, na forma de organização do Estado, não temos maneira de nos pormos de acordo sobre as prestações, os direitos, os desejos das pessoas. É impossível. Por isso, temos de deixar isso a um âmbito intermédio.
As pessoas que querem um certo tipo de prestações… Por exemplo: uns querem aborto, outros não; uns querem anticoncetivos, outros não querem; ou ajuda médica à conceção em certas condições… Isso é impossível estarmos todos de acordo, nessa matéria. Nesse sentido, dizemos: vamos ter de arranjar uma arbitragem para todas essas necessidades ou quereres, que são contraditórios.
O Estado tem de arbitrar todos esses interesses, fazer justiça a todos os grupos, não pode deixar nenhum grupo para trás, nem pode optar por nenhum dos grupos que estão a exprimir a sua legítima forma de funcionar, o seu legítimo querer, e o seu legítimo direito, até, de querer de uma certa maneira.
Mas às vezes o Estado parece incapaz de sanar os conflitos. Por exemplo, no caso dos professores, que ameaçam agora não dar aulas ao 12.º ano, no terceiro período, nem fazer avaliações finais, se o Governo não negociar a recuperação do tempo de serviço até abril. Será que os sindicatos têm apenas uma visão corporativista das questões?
Eu não teria coragem para censurar os sindicatos na procura dos seus legítimos interesses. Não teria, porque os sindicatos têm um papel muito relevante na defesa dos trabalhadores.
A nossa organização escolar colocou-se na perspetiva de gerar conflitos insanáveis, porque se transformou no único prestador de ensino, não é? Portanto, colocou-se na perspetiva de ter conflitos insanáveis. O que se coloca hoje em cima da mesa é a evolução da nossa organização, para que possamos dizer: bom, o sujeito da Educação é a sociedade civil, é a família, são os corpos intermédios. Ao Estado compete garantir que todas as pessoas vão à escola, que todas têm condições de ir à escola, que todas são educadas, mas não lhe compete ser o único prestador, e esse é que é o problema, creio eu.
O Estado torna-se um jogador, em vez de ser um árbitro.
Seria justo dizer que essas referências fundamentais da Doutrina Social da Igreja, quando aplicadas à vida da sociedade, ajudariam a aperfeiçoar o que é hoje o Estado Social?
Completamente. O Estado Social torna-se ingovernável se nós não começarmos a pensá-lo na base da subsidiariedade. É um problema geral em todo o lugar. Na Europa, os países do sul têm esse problema para resolver. Os do norte já o resolveram, mas os países do sul, de tradição católica, por estranho que pareça, são os que têm uma organização mais pensada ideologicamente. Não sei, teríamos de pensar quais são as raízes da nossa evolução.
Essa evolução que tivemos levou-nos a esta situação em que o nosso Estado se colocou de ambos os lados da barricada: por um lado, tem de garantir o direito à greve; por outro lado, tem de garantir que a Educação funciona. Isso é um conflito insanável, digamos assim.
Existe em Portugal um afastamento dos setores ligados ao que se chama Democracia Cristã do mundo sindical?
O mundo sindical não se coloca fora, creio eu, vem principalmente da Doutrina Social da Igreja e também do mundo socialista, de acordo. Mas não se coloca fora, foi a evolução que nós tivemos.
Houve a tendência de pensar que o Estado era o principal sujeito da Educação, ora, nós estamos a ter as consequências disso, não é? Temos lóbis poderosíssimos que assumem, tendencialmente, o poder de controlar o próprio Estado central. O Estado agora está a reagir, a pôr em causa direitos, porque a requisição civil é a greve ao contrário, é o direito a funcionar ao contrário, um mecanismo que aparece em cena quando há um conflito insanável. É direito contra direito, ou melhor, eu diria que é a subversão do direito contra a subversão do direito, na medida em que o Estado de direito não está a funcionar na sua base.
Há necessidade, nesta altura, de se refletir sobre o futuro do sindicalismo, sobre a validade do instrumento da greve, por exemplo?
Sim. A greve é indiscutível, no sentido de ser uma última razão, um último protesto, contra um direito esmagado. Portanto, a greve é indiscutível nesse ponto de vista.
Não pensada como um direito, porque um direito é uma coisa tecnicamente diferente, mas é uma garantia. Toda a pessoa pode protestar, quando o seu direito estiver a ser desqualificado, não estiver a ser respeitado. Toda a pessoa tem direito a um ato de insubmissão último, que é o que a greve representa para os trabalhadores. Depois, não há nenhuma greve que não tenha pressupostos políticos: tem garantias, hoje, mas no século XIX as pessoas eram esmagadas.
Lembrem-se daquela história de uma fábrica, nos Estados Unidos na América, em que as senhoras morreram lá dentro, quando pegaram fogo ao edifício. Nós hoje temos mecanismos, há um direito à greve porque esta se encontra regulamentada e nós não calcamos certos níveis de respeito.
Mas a realidade política e sindical está, de facto, em mudança. Em muitos países têm surgido movimento cívicos, que já têm peso e representação parlamentar, como em Espanha, com o ‘Podemos’ e o ‘Ciudadanos’, ou até em Portugal, com o PAN… Em França o movimento ‘Coletes amarelos’ ultrapassou o tradicional domínio dos sindicatos nos protesto de rua… isto também merece um olhar atento da Igreja, à luz da sua Doutrina Social?
Sim, porque o movimento sindical hoje funciona não tanto em relação aos empresários e patrões, que havia, mas o Estado. Há muitos trabalhadores que continuam a ser exploradas, o os sindicatos praticamente não olham, por exemplo, para os trabalhadores dos sistemas de saúde não-estatais. Os nossos enfermeiros fazem greve porque estão maltratados no Serviço Nacional de Saúde, ganham pouco, mas ainda ganham menos nos sistemas de saúde não-estatais. E o mesmo na Educação.
Por isso, o sindicalismo devia voltar-se para este segundo aspeto, não só para o primeiro. Se houvesse uma greve de enfermeiros, em relação aos grupos privados de saúde, ela seria muito bem-vinda, e era indiscutível. A diferença entre a faturação ao Serviço Nacional de Saúde, ao Estado, e aquilo que pagam às pessoas é completamente escandaloso.
A transformação social muito rápida, no que diz respeito ao trabalho, tem tido, no Papa Francisco, um líder de pensamento e de reflexão, sobre aquilo que a Doutrina Social tem e pode ensinar à sociedade, sobre estes aspetos?
Com certeza que sim! O Papa tem toda a razão em chamar a atenção para os precários e eu acho que também era necessário chamar a atenção para aqueles que vivem ou que estão associados ao trabalho temporário, que é outra realidade que está a crescer muito de volume na nossa sociedade, pessoas que se inscrevem em empresas que depois os colocam no trabalho. Nós não podemos deixar de ver o que é que isso significa. O ponto de vista da Doutrina Social da Igreja é sempre dizer que nós não podemos ficar descansados enquanto houver um trabalhador que diga que é explorado, e que seja realmente explorado.
As formas de exploração hoje são uma certa precariedade – a precariedade dos pobres, porque há também a precariedade dos ricos, que essa não é necessária ser guardada – mas a precariedade dos pobres é um problema.
A situação dos trabalhadores temporários é outra, e essa aí é que a Igreja diz que tem de ser absolutamente vista e defendida pelo movimento sindical.
O movimento sindical não pode ser um grupo de pressão dentro da Função Pública, tem de ser uma defesa dos trabalhadores onde e quando for necessário defender os direitos dos trabalhadores.
De que forma é que todo o movimento social, político, económico, perdeu de vista um conceito fundamental da Doutrina Social da Igreja, que é o bem comum?
O bem comum é uma categoria um pouco abstrata para pensar as coisas em concreto. Em último caso realmente é o bem comum, a sociedade vive com esse horizonte.
Nós temos de ter em conta outras categorias mais imediatas, como sejam as categorias da justiça, da solidariedade, da inclusão, da exclusão, que nos falam de forma mais imediata acerca do funcionamento das sociedades. Mas realmente, em último caso, é o bem comum, que é aquilo que nós podemos dizer como a sociedade enquanto dada a si mesmo, desde a graça divina, deixem-me falar assim, que é dada por Deus a si mesmo.
A expressão do bem comum é por exemplo aquela que vem no livro dos Atos dos Apóstolos – eles viviam todos em comum, quem tinha propriedades repartia. Ora, este é o princípio ordenador último da vida social, é a sociedade enquanto dada a si mesma. Portanto, esse é o horizonte que nos mobiliza para podermos pensar em imediato a justiça, a justiça de uma dada situação, da situação da greve dos enfermeiros, dos professores que, por sua vez, representam o imediato do funcionamento da nossa sociedade.
São eles que se sentem mal, e, portanto, se se sentem mal nós temos de ver se têm razão para isso e se o bem comum funciona, se não estamos a privilegiar o bem apenas de um grupo. Aí compete ao Estado arbitrar para que um grupo que tem muita força, um grupo de pressão, não possa conduzir em favor do seu próprio querer aquilo que é comum, aquilo que é de todos.
Isto é, que um grupo económico não possa mobilizar em seu favor o fornecimento ao Sistema Nacional de Saúde, ou que um grupo de trabalho não possa bloquear completamente todo um sistema, que é o que está a acontecer. E isso está a acontecer porque a evolução da organização da nossa sociedade o permitiu.
A Doutrina Social da Igreja devia ser mais conhecida pelos próprios católicos?
Pelos católicos e pelos outros. A Doutrina Social da Igreja é a reflexão ética da Teologia e dos cristãos sobre a sociedade. Nós temos, não só desde o século XIX mas desde sempre, uma reflexão sobre as exigências éticas do funcionamento da vida social, desde a Bíblia.
A Bíblia é talvez o primeiro testemunho da existência de uma consideração ética da sociedade, desde o século V ou VI antes de Cristo ou até antes disso. Portanto, é um património importantíssimo. Eu diria que é a corrente humanista, de pensamento da sociedade, primeira que houve no Ocidente. Podem dizer que também houve na Grécia, mas não foi tão explicita.
É o primeiro património que nós temos a orientar-nos na resolução dos problemas de agora. Portanto, eu lamento muito que a Igreja em Portugal dê pouca importância à Doutrina Social da Igreja, e que os movimentos de realização de valores da sociedade estejam muito debilitados.
Quer os movimentos de trabalhadores, de professores, estão muito debilitados e essa parte da nossa pastoral continua bastante desconsiderada, um pouco desprezada, porque ela é mais difícil. Mesmo os nossos bispos têm feito algum pronunciamento, mas não são muito relevantes os pronunciamentos nesta área do funcionamento da nossa sociedade.
Deviam acontecer mais vezes…
Eu acho que sim, deviam acontecer mais vezes e de forma a mobilizar os cristãos para poderem intervir de forma lúcida dentro da nossa sociedade.