Autobiografia evocou momentos que antecederam eleição e reação à escolha dos cardeais

Cidade do Vaticano,08 mai 2025 (Ecclesia) – O falecido Papa Francisco apresentou memórias inéditas do conclave em que foi eleito, em março de 2013, numa biografia publicada em janeiro deste ano, recordando a curiosidade dos cardeais e a surpresa perante a sua decisão.
“Dizer que não esperava nada do género, nunca na vida e muito menos no início daquele conclave, é certamente dizer pouco”, escreveu Francisco na obra intitulada ‘Spera’ (Esperança).
O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, então com 76 anos, entrou para o conclave de 2013, a 12 de março, e foi eleito no dia seguinte como sucessor de Bento XVI, assumindo o inédito nome de Francisco.
O Papa assinalava que, como dizem os vaticanistas, poderia ser um “kingmaker”, entre os eleitores do sucessor de Bento XVI, na sua condição de cardeal latino-americano, capaz de “endereçar um número de votos sobre este ou aquele candidato”.
“Eu não contava, os candidatos fortes que os jornalistas indicavam e procuravam naqueles dias de março de 2013, eram outros: o arcebispo de Milão, Angelo Scola; o cardeal de Boston, Sean O’Malley; o arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer; e Marc Ouellet, o cardeal canadiano que é hoje presidente emérito da Comissão Pontifícia para a América Latina”, recordou.
Nas congregações gerais, as reuniões preparatórias do Colégio dos Cardeais, Jorge Mario Bergoglio apresentou um discurso que tinha “despertado interesse, atenção”.
“Um cardeal aproximou-se de mim e disse-me: «Pois, gostaríamos mesmo de uma pessoa que fizesse essas coisas…». «Sim, mas onde a encontras?», respondi-lhe. E ele: «Tu.» Comecei a rir: «Ah, ah, ah, sim, está bem, cumprimentos lá em casa»”, escreveu.
A 12 de março, início do conclave, o futuro Papa apresentou-se na Casa de Santa Marta com a mala em que carregava “poucas coisas”.
“Tinha deixado tudo em Buenos Aires, os livros que começara a ler, as homilias que tinha preparado para o Domingo de Ramos e para a Quinta-feira Santa, e também um pouco de desordem. E já comprara o bilhete de regresso para o sábado, 23”, revelou.
Francisco recordava ter dito, dias antes, a outro arcebispo, que “neste momento da Igreja, nenhum cardeal pode dizer que não”.
A primeira votação encontrou o arcebispo de Buenos Aires “absolutamente tranquilo”, embora os votos se fossem repetindo no segundo e terceiro escrutínios.
Francisco disse que foi sendo questionado por vários cardeais e que apenas quando lhe perguntaram sobre a suposta falta de um pulmão – foi operado em 1957 para a retirada de um lobo superior, onde estavam três quistos – percebeu a possibilidade de ser eleito.
“Compreendi pelo menos que havia o risco”, assinalava.
O Papa afirmou que nunca preencheu o boletim que é oferecido para contar os votos em cada cardeal, afirmando que “o escrutínio é uma coisa mesmo aborrecida de seguir, parece um canto gregoriano, mas com muito menos harmonia”.
A maioria de dois terços dos votantes chegaria no quinto escrutínio, em que se repetiu a votação devido a um cartão em branco a mais.
“Enquanto os cardeais ainda aplaudiam e o escrutínio continuava, o cardeal Hummes, que tinha estudado no seminário franciscano de Taquari, no Rio Grande do Sul, levantou-se e veio abraçar-me: «Não te esqueças dos pobres», disse-me ele. A sua frase marcou-me, senti-a na carne. Foi então que surgiu o nome Francisco”, recordou.
O Papa relatava que, na sacristia, colocou o anel da ordenação episcopal e rejeitou a cruz em ouro e os sapatos vermelhos.
“Não foi nada de preparado. Era simplesmente o que sentia, com espontaneidade. Tal como não quis a capa de veludo nem o carretel de linho”, explicou.
Saí e fui de imediato ter com o cardeal Ivan Dias, que estava numa cadeira de rodas e, talvez por ainda não ter confiança com as novas vestes, tropecei num degrau. O meu primeiro ato de Papa… foi um tropeção. Mas não caí”.
Francisco admitia que encontrou paz, após a eleição, e que gosta de estar com as pessoas, recordando a opção por residir em Santa Marta, resposta à necessidade de viver “junto dos outros”, numa opção que provocou surpresa e algum desconforto, junto de responsáveis do Vaticano.
‘Spera’, editado pela Mondadori, foi publicado em mais de cem países, incluindo Portugal (Nascente), e foi escrito com Carlo Musso, ex-diretor editorial de não-ficção da Piemme e da Sperling & Kupfer.
O Papa Francisco faleceu a 21 de abril, na sequência de um AVC, aos 88 anos de idade e após mais de 12 anos de pontificado.
OC